“Na prisão, tudo é mediado pela violência”

Por Mariana Desidério, de Brasil de Fato

As prisões brasileiras são dominadas pela lógica da violência e por valores como o machismo e a lei do mais forte. É o que diz Roberto da Silva, especialista em educação e sistema prisional.

Professor da Faculdade de Educação da USP, Silva fez do mestrado à livre-docência nessa universidade. O tema de suas pesquisas tem tudo a ver com sua trajetória de vida. Ele foi interno da antiga Febem e já esteve na prisão, condenado por crimes diversos.

Nesta entrevista, o professor fala sobre o abandono do sistema prisional brasileiro (o último exemplo são os casos de barbárie no Maranhão) e a política de encarceramento em massa que vigora no país atualmente. Para ele, não educação que vai salvar o sistema prisional. Educação não faz milagres, afirma. Leia a entrevista:

Temos visto situações extremas no Maranhão, como a decapitação de presos. O que isso revela sobre o sistema prisional brasileiro?

Esses motins e rebeliões revelam exaustão do sistema. Quando os presos não são ouvidos, não têm canais de comunicação com as autoridades, com a Justiça ou com o sistema penitenciário, quando se esgotam as possibilidades de negociação, o último recurso para o qual eles apelam são essas manifestações extremadas de violência. Temos de aprender a reler isso como um pedido de socorro.

Por que a situação chegou a esse ponto por lá?

Não sei dizer sobre a situação específica de lá. O que se alega é a presença de facções criminosas. Mas mesmo a existência dessas facções mostra o abandono das prisões por parte das autoridades. As medidas que o Estado resolveu adotar agora, após reuniões emergenciais, são as medidas corriqueiras que já deveriam ter sido tomadas há muito tempo. É o abandono do sistema penitenciário que leva a essas manifestações de violência.

Um dos principais problemas é a superlotação. Por que o Brasil prende tanto?

É a lógica do encarceramento em massa de segmentos extremamente específicos. Esse perfil da população prisional no Brasil, de ser majoritariamente jovem, de baixa escolaridade, baixa qualificação profissional, afrodescendente e moradora de periferia mostra a seletividade do sistema de Justiça. Como o poder público não pode alcançar essas populações com as políticas públicas, com os serviços básicos de educação, saúde, moradia e tudo o mais, o que se faz é armar uma grande teia do sistema policial e do sistema de Justiça para pegá-los diante de qualquer infração.

Mas são pessoas que cometeram crimes, não?

De 550 mil presos no sistema penitenciário, se você somar o valor monetário das infrações, isso é insignificante. Não é nada diante de uma falcatrua que se faz na prefeitura, de um desvio de verba do metrô. Eles não estão presos porque roubaram da sociedade e deixaram pessoas mais pobres. São pessoas que, diante da condição de miséria que vivenciam, em algum tipo de infração eles iriam cair.

Investir em educação pode evitar casos como esse?

Não se pode esperar que a educação em prisões faça milagres. Não é responsabilidade da educação, por exemplo, melhorar os índices penitenciários, diminuir motins, mortes, rebeliões e violência. O que se quer da educação dentro da prisão é o que a educação já faz fora. Que ela qualifique as pessoas para competir em condições de igualdade pelas oportunidades que a sociedade oferece, para fazer seu projeto de vida. O que o preso vai fazer dessa educação, se vai deixar de ser criminoso ou não, isso não é papel da educação.

O acesso dos presos à educação avançou nos últimos anos?

Eu considero o sistema penitenciário a última grande fronteira da educação. Ele estava à margem da política educacional. Isso começou a ser construído nos últimos cinco anos e vem caminhando. O próprio entendimento de que educação é um direito do preso, e não um privilégio, já é um avanço. Durante muito tempo, mesmo que o preso quisesse estudar, não havia oportunidade. Hoje, quem quiser estudar tem essa oferta. Nem sempre ela é fácil de ser acessada e, quando é acessada, nem sempre é a mais adequada. Mas querendo estudar, algum meio há. Hoje, os diversos programas federais, como Pronatec, Prouni e Sisu são acessíveis ao preso.

A educação nas prisões é igual à educação regular?

Nas prisões, a abordagem mais adequada é, em vez de educação escolar, uma educação social. Ou seja, habilitar essas pessoas para voltar a viver de acordo com as regras que a sociedade aceita. São pessoas que só acreditam no poder da arma, da ameaça e da violência. Não tem conversa, a única coisa que sabem fazer é enfiar uma arma na cara dos outros. Se ele for para uma situação de escola, de fábrica, de escritório, de convivência social, ele se sente deslocado.

Quais dificuldades um egresso encontra para fazer seu projeto de vida fora da prisão?

Primeiro, é o longo tempo de permanência do sujeito no cárcere. No Brasil se fica em média oito anos na prisão. Também pesam os antecedentes criminais, a baixa escolaridade e a falta de qualificação profissional. Além disso, a maioria dos presos tem dificuldade, por exemplo, com moradia. E é um problema que não é abordado no âmbito das políticas de atendimento a presos, egressos, ou às famílias deles.

Existe uma resistência da sociedade quando se fala em política de auxílio a presos ou egressos?

As próprias autoridades não informam corretamente a população sobre o que significa ser preso no Brasil. Por exemplo, mais de 90% dos presos são desempregados ou ex-empregados. Ou seja, pessoas que saíram da sua terra natal, vieram para os grandes centros e aqui não conseguiram organizar sua vida. Para esses mais de 90%, moradia e emprego resolveriam o problema. No caso dos presos que trabalhavam, eles adquiriram direitos como qualquer trabalhador. Eles têm o auxílio desemprego, têm direito a fundo de garantia. Os formadores de opinião tratam muito mal essa questão, como se isso fosse um benefício, uma regalia dada ao preso. Não é. É direito dele.

Como você avalia a política prisional do estado de São Paulo?

Aqui, a lógica do PSDB nos últimos 16 anos tem sido o aparelhamento das polícias e da inteligência policial, o que fez com que o sistema penitenciário passasse de 43 prisões, há 15 anos, para 150 hoje. Constroem-se mais prisões no estado de São Paulo do que escolas e hospitais. Agora o estado já não está dando conta de construir prisões. Diante dessa dificuldade, vem o apelo muito pernicioso do mercado. Ou seja, prisão acaba virando um negócio. Além de ser um instrumento de controle da segurança pública por parte do estado.

Como assim?

A gente não tem dúvida de que o Estado, falando aí de poder executivo, legislativo e judiciário, eles usam deliberadamente o sistema de internação de adolescentes e o sistema de execução penal para aprimorar os próprios mecanismos de controle da sociedade. Diante de situações políticas desfavoráveis, nada melhor do que fomentar uns motins, umas rebeliões por aí, para o Estado aumentar o controle policial e mostrar a sua força.

Você acha que isso é deliberado?

Sim. É deliberado. Não é ocasional.

Você passou um período preso na década de 1980. O sistema prisional mudou de lá para cá?

A cultura penitenciária continua a mesma. Essa cultura possui um tripé de sustentação, que é composto em primeiro lugar pela excessiva tolerância ao uso da violência. A violência é utilizada para mediar todas as relações: entre presos e presos, presos e funcionários, funcionários e sistema, e assim por diante. Depois vem a excessiva tolerância à corrupção. E não estou falando da corrupção monetária, é a corrupção dos costumes e dos valores. O machismo, o uso da força, a hombridade, a prevalência do mais forte, esses valores ainda são predominantes dentro da prisão. Isso está na base da dificuldade que o egresso tem de depois voltar a se adaptar em sociedade.

E o terceiro ponto?

O terceiro é a prevalência da regra do prêmio e do castigo. Em vez de prevalecer a lógica do direito, dentro da prisão os direitos são negociados. Ou seja, se permite aos presos dominar outros presos, se permite dominar espaços e territórios dentro da prisão. Sempre em troca de algo. Isso faz com que, dentro da prisão, certos presos se sintam muito importantes, quando em liberdade eles não tinham importância nenhuma.

Você estudou direito na prisão e, depois de sair, tornou-se professor da USP. Como foi esse caminho?

O estudo veio pela necessidade de entender a circunstância de vida que se está no momento, entender a lógica de organização da sociedade, a estrutura e o funcionamento das leis e do sistema de justiça, para ver como lidar com esse emaranhado de complicações. Não é o estudo do direito, é o estudo da sociedade e da estrutura social para aprender a lidar com ela.

E como você procurou entender a sociedade?

Para isso não precisa ser um estudo escolar. A leitura ajuda, as conversas ajudam, tentar entender como as pessoas pensam, como elas fundamentam suas decisões. Foi assim que eu fiz o meu caminho, mais fora da escola do que dentro. Eu só busquei a escola para ela certificar o aprendizado que eu tive ao longo da vida. E depois, quando me senti capacitado e qualificado para competir em condições de igualdade, eu resolvi disputar com as pessoas que não tinham antecedentes criminais.

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