O site Justificando postou artigo de Vinicius Paz Leite, Defensor Público atuante em Execuções Penais e Associado da APADEP. Como indica o título – “O processo penal é uma esteira fordista de produção de criminosos” –, o artigo oferece uma reflexão crítica sobre o que é crime e sobre a lógica vigente na Justiça que leva ao encarceramento.
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Terça-feira, 25 de julho de 2017
O processo penal é uma esteira fordista de produção de criminosos
Tentarei ser breve. Nesses tempos de hiperlink e de twitter, se a leitura não chegar ao final, a culpa é toda minha e da nossa liquidez. O assunto é interessante: é preciso mentir para defender um processo criminal? Quais são as aflições de um Defensor?
Na lógica da confiança do consumidor nas marcas, o real é o que menos importa. O fetiche, o sonho de felicidade pelo consumo da marca mais vale que a real necessidade do produto. Esta lógica da marca atinge a todos os produtos capitalistas, até os não desejados num sonho de uma noite de verão. A lógica da confiança e do consumo opera no pesadelo do desemprego estrutural, cujo logo, nada menos confiado que um Nike, chama-se crime.
De outro lado, por falar em crime, furto, em determinada época da Roma antiga, não pertencia à seara penal. Furtar, em determinadas sociedades é verbo desconhecido. Usar certas drogas, antes do proibicionismo mais acirrado, em um primeiro momento já foi encarado como normal, posteriormente como digno de tratamento médico compulsório e por último virou crime. Matar não é crime em todas as sociedades. Não há conduta, mesmo no caso do incesto, proibida homogeneamente em todas as sociedades. Diga-se de passagem, incesto não é crime no Brasil.
Crime faz parte de um campo chamado dever-ser. Não existe um crime natural. É importante traçar uma linha demarcatória entre o ser e o dever-ser, mesmo que rasa, até com erros terminológicos, mas bem explicativa. As relações causais naturais, como o vento bater na maçã e a maçã cair, fazem parte do ser. A produção de uma mercadoria por um trabalhador, a divisão social do trabalho, a força de trabalho em atividade, que gasta o corpo e o intelecto, é ser. Ao revés, imputar um crime à alguém é dever-ser. Se você faz um contrato, logo ele deve ser cumprido. Não há uma relação necessária causal entre o contrato e seu cumprimento, como uma maçã que cai atendendo à lei da gravidade. O cumprimento não é causa naturalística do contrato, mas sim uma obrigação inventada pelo ser humano.
Vender cocaína, por enquanto, no Brasil deve ser uma conduta apenada, a não ser que você tenha um helicóptero ou um jatinho.
Dever-ser está no campo das idéias, mas pode gerar grandes conseqüências no campo do ser, principalmente quando o dever é confundido com o próprio ser e vira uma verdade, uma maçã que objetivamente cai com o bater do vento. Crime, como entendemos hoje, é uma invenção humana, um dever-ser, não existe por si só. Vou categorizá-lo como um logo, uma marca que nasce precisamente com a teoria analítica do crime no início do século XX. Claro que estamos rechaçando o conceito de crime dado pelos positivistas biológicos. Para estes o crime era natural e imutável, um conceito a ser definido por médicos, psicólogos e demais “cientistas”.
Deixando de lado alucinações cientificistas, o crime é uma invenção humana construída por um processo complicado de definição de papéis, de divisão social do trabalho jurídico, legiferante e penitenciário, um misto de chão de fábrica e teatro. Ao contrário do processo de elaboração de uma marca, em que se pensa em como atrair o público alvo, a etiqueta do criminoso é uma marca de finalidade invertida, rotula negativamente o indivíduo, com base numa invenção parlamentar espiritualizada na lei.
Todos cometemos fatos típicos, antijurídicos e culpáveis (crimes) diversas vezes durante nossas vidas, inclusive os responsáveis pelo teatro fabril, pelo processo de produção do criminoso. São mais de cinco mil tipos penais existentes na legislação brasileira e, para se ter uma ideia, mudar ninho de passarinho do lugar é crime. Se todos fossemos pegos e processados criminalmente por todos os fatos típicos que cometemos, com nossa reincidência, provavelmente teríamos a “personalidade voltada para o crime” e ficaríamos presos na terceira embriaguez ao volante para “manutenção da ordem pública”.
O mundo seria um imenso presídio, o que é sonho de muita gente. O processo penal é uma esteira fordista de produção de criminosos.
O grande encarceramento, massificando as rotinas dos profissionais do Direito, a substituição da vítima pelo Ministério Público, a impossibilidade de solução efetiva do conflito, a falta de um responsável por este processo produtivo, o fetiche da mercadoria, tudo isso é parte da engrenagem. Vamos fazer um recorte desta peça teatral fabril muito interessante, um corte que vai da feitura das leis até a sentença:
Os parlamentares, através de um poder, sabe-se lá como se mantém legítimo, com a desculpa de proteger a sociedade, define tipos penais, sancionados pelo Presidente. Esses tipos penais permitem que o braço armado do Estado prenda, averigue e faça tudo mais que a escuridão das ruas permitir, com o pretexto de se fazer valer a lei que iria defender a sociedade, muito embora a polícia chegue quando o dano já foi cometido.
É preciso ter a noção que é impossível prender todos que estão cometendo atos descritos nas leis como crimes. Alguns os cometem por meio de uma operação fiscal, através de um computador ao sabor do ar condicionado de seu escritório sem que ninguém perceba. Já outros os praticam em plena luz do dia, pois não têm escritório, computador, e às vezes lhes faltam até o ar quando estão cometendo os atos tidos por crimes pelo legislador.
A coisa se dá mais ou menos assim: a polícia, geralmente militar, sequestra o agente que está cometendo um fato típico evidente, dentre tantos outros que poderiam estar na mesma situação. Um cidadão, segundo o Infopen, provavelmente, com o ensino fundamental incompleto, apanhado na rua porque o crime que ele comete geralmente é em público e chama muito a atenção, pois pobre não tem aquela privacidade parlamentar pra “cometer seus crimes” em paz. No nosso exemplo, um roubo em via pública contra um transeunte cometido por um (para sempre) desempregado.
A polícia civil lavra o auto de flagrante rapidamente, dentre vários outros que estão na fila, pois há vários casos para investigar. O agente penitenciário o recebe na penitenciária assim como recebeu dentre mil, mil e quinhentos presos. Irá vigiá-lo. A Secretaria de Administração Penitenciária é a responsável pela segurança e por (não) fornecer subsídios mínimos para sua sobrevivência. O Promotor, nadando numa piscina de inquéritos, acumulando outras atribuições, promove a denúncia.
O Juiz recebe a denúncia sem analisar muito bem, pois há uma pilha de processos “pra fazer”. O Defensor entra em contato, quando muito, antes da defesa prévia, para trazer más notícias e dar um alento. Faz a defesa prévia sem testemunhas, sem tese de defesa, padrão. O juiz não leria se fosse diferente. A regra da esteira é ler o menos possível, não há tempo para reflexões! É marcada a audiência.
No recorte feito por este artigo, em que se vai da produção da lei até a sentença, eis o final do segundo ato. O ápice. Onde serão ditas mentiras sem fim, feitas perguntas em sua totalidade inúteis, que em nada contribuirão para a solução do conflito. As perguntas geralmente são tendenciosas para a construção do produto e de seu logo: todos querem a culpa e quais as circunstâncias da dosimetria da pena. Tudo a justificar e ratificar a ação policial.
Não há tempo para se solucionar o conflito, não há possibilidades de solução de conflito. O Ministério Público substitui a vítima, que não tem seus interesses reais tutelados. A vítima somente revê seu agressor no reconhecimento, pela fresta da porta, depõe na ausência do réu, nunca mais olha pra cara do, então em curso, criminoso, nem que seja para xingar.
Fazem perguntas querendo condenar, à exceção da tão necessária à engrenagem e inegociável defesa criminal.
Repensar a pena, nem pensar. Pensar inconstitucionalidades por desproporcionalidades das penas, nem pensar. Inconstitucionalidade da autolesão, nem pensar. A bendita da inexigibilidade de conduta diversa, falada por pelo menos três anos na faculdade de Direito inexiste. Legítima defesa e estado de necessidade só existem no Júri, como teses, de antemão rechaçadas pela mídia. A única tese discutida realmente é a tipicidade formal e olhe lá. Tipicidade material vai depender do medo que certos atores jurídicos têm do “criminoso” e de seus “crimes”.
Estão interessados na autoria e materialidade, exaustivamente repetidas nos relatórios, nas argumentações do Ministério Público e do Juiz. Querem um culpado.
O processo fordista tem de produzir seu produto necessário, precisamos atender à demanda mercadológica por punição.
Ficam de fora do processo soluções para as aflições dos envolvidos no conflito, os próprios esquecimento e perdão da vítima. A composição do conflito é impensável. Ficam de fora, principalmente, a compreensão por parte do agressor das consequências de suas ações, sua real responsabilização e soluções para que não se piore o conflito já instaurado ou não se criem novos conflitos. A mentirinha é contada e reproduzida por todos. Construímos o crime, mentira contada várias vezes pelos diversos atores jurídicos, de consequências reais.
Produzimos um criminoso e o martelo do Juiz atesta a confiança na marca.
Pronto, a desgraça está feita, sem que qualquer agente, policial, Delegado, Promotor, Juiz, Defensor, diretor do presídio, vítima ou qualquer outra pessoa fosse responsável pelo produto final da esteira fordista. Afinal, quem aperta o parafuso não encaixa o pneu, quem encaixa o pneu não embala o produto. Há um processo alienado de produção do criminoso e a mídia vende a marca mostrando a favela como principal matéria prima para a produção. O “criminoso” é colocado em um presídio, tirado do convívio social, para uma outra realidade, com um ethos violento totalmente diferente do vivido na sociedade, sob pretexto de ser ressocializado. Como ressocializar tirando da sociedade e isolando intramuros? Mentiras e mais mentiras.
Etiquetam-se os mesmos de sempre como criminosos, estes desguarnecidos internalizam o estigma e redundam na profecia que se auto-realiza. O que não era valentão vira perigoso, o que furtava agora vai assaltar, o que traficava drogas amadoramente agora sabe como arrumar armas e ligar carros sem a chave. Não se trata de escola de criminosos, trata-se de uma etiqueta que o indivíduo assume e confia. O “criminoso” e a maioria dos que o cerca acredita na marca selada pelo martelo do juiz. A partir daí as consequências do crime são reais.
Cria-se um criminoso, que acredita ser um criminoso, que age como se espera que um criminoso aja.
E o Defensor? O que o sistema quer e precisa do Defensor?
O sistema quer o óleo lubrificante das engrenagens para evitar o desgaste, o conflito. Atestar que a mentira será produzida em contraditório e ampla defesa.
O Juiz pode agir, condenar, decretar prisões sem o pedido do Promotor, figura que acusa. Mas de forma alguma pode o criminalizado ficar sem Defensor. Defender-se é impossível num país de analfabetos e ficar sem o trabalho desse ator, do Defensor, na produção significa degringolar o sistema de calibragem das pressões e contradições geradas pelas mentiras do sistema, podendo gerar até reações contra a esteira de produção, ante a injustiça da falta de defesa.
Necessária e divina defesa criminal. “Fique tranquilo, você será condenado a ficar anos numa cela 4X6 superlotada, mas terá uma ótima defesa que chegará até o STF com um habeas corpus para melhorar o seu regime. Falaremos contigo antes da audiência em entrevista semi-reservada e tentaremos traçar a melhor estratégia para que o fogo da inquisição doa menos”. Isso envolve a confissão do pacto com o maligno. “Claro! Vamos diminuir a pena se você for reincidente, basta confessar a bruxaria”.
Isso cansa. Somos os mentirosos cansados que calibram o sistema para manter o equilíbrio da equação, o bom funcionamento da máquina.
É preciso mentir muito pra si mesmo para defender no processo penal, aceitar e reproduzir a mentira do crime e todas suas outras mini-mentiras.
Poderia ser diferente? Deve ser! Dever-ser como falamos é um pouco diferente do ser. Poderia ser e às vezes, longe, muito longe da realidade judicial, o é.
É preciso trabalhar na esteira fordista de produção interpretando um bom funcionário da fábrica, mas é preciso ser disfuncional. Não é possível ver um trabalho não mentiroso nos moldes do recorte acima desenhado. A real defesa contra o processo fordista de produção do criminoso está muito distante de acontecer. Se é difícil mudar as causas, deveríamos ater aos efeitos danosos do processo.
Milhõess de habeas corpus nas instâncias superiores, em nome da mentira, aceitando a mentira, seria a solução? Não é uma pergunta retórica, mentira dita várias vezes pode virar verdade. O habeas corpus pode ser uma boa mentira. Alessandro Barata fala em combater as condições dos presídios… Reforma-se aqui e acolá, mas ainda sinto a angústia. Estamos mentindo.
As mentiras têm pernas curtas e eu só gostaria, quando os consumidores do produto perceberem a falácia da marca, que entendam nossa posição dialética de defender um pobre do crime no capitalismo tardio. Precisamos mentir sim e a grande mentira é o crime.
Conceitos tirados de Houlsman, Nilo Batista, Zaffaroni, Barata, Foucault e Marildo Menegat.
Vinicius Paz Leite é Defensor Público atuante em Execuções Penais. Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC (2012). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito (UFRJ).