Defensoria Pública: conquista de uma sociedade democrática
Um artigo publicado recentemente pelo jornal O Estado de São Paulo questionava se a petição de ação civil pública proposta pela Defensoria Pública do Estado com o objetivo de limitar a atuação da Polícia Militar em manifestações seria um besteirol, qualificando-a ainda como um documento sem conhecimento “da ordem institucional e do funcionamento das instituições jurídicas”. O mesmo texto também afirmava que os Defensores Públicos confundem o órgão em que trabalham com uma ONG.
Não cabe, neste artigo, entrar no mérito da ação civil pública apresentada pela Defensoria, cujo tema divide opiniões em diversos segmentos da sociedade. Contudo, é importante evitar que sejam tomadas como verdades absolutas afirmações genéricas com potencial de conduzir à má compreensão e, pior, à depreciação de uma instituição tão fundamental à Democracia e à sociedade brasileira como a Defensoria Pública. Para esclarecer alguns pontos específicos trazidos pelo referido artigo se faz necessário, antes, retomar os papeis conferidos pela Constituição Brasileira e pela legislação à Defensoria.
O artigo 4º da Lei Complementar Nacional nº80/ 1994, que trata das disposições gerais sobre a Defensoria Pública, estabelece que, entre outras funções, a Instituição deve promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico, promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos daqueles que não possuem condição financeira para custear sua defesa, assim como promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados (direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais).
Tais termos deixam evidente que, ao propor a ação civil pública, a Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Direitos Humanos, o fez com legalidade e legitimidade para apresentar ação de tutela coletiva com vistas à efetividade dos direitos fundamentais daqueles que são objeto de sua defesa (neste caso, grupos de manifestantes). Da mesma forma, independentemente de se concordar ou não com as demandas e argumentos da ação pública, o poder judiciário, que num primeiro momento deferiu o pedido, também atuou dentro de todas as regras processuais estipuladas pelo sistema de Justiça.
Outro ponto importante a ser enfatizado é que o fato de, diariamente, Defensores Públicos defenderem os mais necessitados e, por extensão, suas causas, não significa que dediquem suas carreiras a bandeiras específicas. Defensores Públicos podem atuar na defesa de vítimas de preconceito racial e daqueles que praticam o racismo; defender vítimas de violência policial ou o próprio policial que sofre qualquer tipo de opressão; garantir a defesa da mulher que passou por violência doméstica ou do agressor, que tem direito a uma defesa que lhe assegure o devido processo legal e, se declarado culpado, a devida pena. Antes de tudo, a tarefa da Defensoria Pública é garantir, aos que não podem arcar com os custos do acesso à Justiça, a defesa qualificada e a garantia de seus direitos.
Por estas razões, a opinião pública jamais deve confundir a Defensoria Pública com uma ONG, mesmo quando os assistidos pela Instituição vivam situações que são objeto também da atuação de ONGs. Nos processos em que (não raro) se opõem interesses de grupos de alto poder econômico, político e social e de cidadãos de baixa renda, a justiça não pode ser comprometida porque uma das partes conta com condições econômicas e sociais mais favoráveis que a outra ou pela inexistência do que, no sistema de Justiça é conhecido por “paridade de armas”, ou seja, de condições entre acusação e defesa.
Em um país com ainda altos níveis de desigualdade social, a existência e a valorização da figura do Defensor Público são fundamentais para, aos poucos, enfraquecer as demais desigualdades decorrentes da primeira: para ficar em poucos exemplos, a existência dos “dois pesos e duas medidas” nos julgamentos de adolescentes da periferia e de classe média alta, a discriminação racial e os abusos perpetrados, muitas vezes, por agentes do próprio Estado. Que as divergências de opiniões, saudáveis ao amadurecimento da Democracia, não levem à desqualificação desta instituição que é uma conquista de toda sociedade brasileira.
José Moacyr Doretto Nascimento
Presidente em exercício da Associação Paulista de Defensores Públicos (Apadep)