ENTREVISTA – ASIM QURESHI, DIRETOR DA ONG CAGEPRISONERS, FALA SOBRE A VIOLAÇÃO DE DIREITOS DE PRESOS DE GUANTÁNAMO

Situada em Cuba, a prisão militar de Guantánamo foi montada pelos Estados Unidos para abrigar suspeitos de terrorismo após os atentados de 11 de setembro de 2001. Desde sua criação, Guantánamo é acusada por organizações internacionais de prática de tortura e de toda sorte de violações dos direitos humanos de seus detentos, que já chegaram a somar mais de 750 cidadãos de 48 nacionalidades e hoje são 171 prisioneiros de 20 nações distintas.

Uma dessas organizações, situada em Londres, é a Cageprisoners, que tem como objetivo sensibilizar para a situação dos prisioneiros em Guantánamo e outros detidos como parte da “guerra ao terror”, em especial os de origem muçulmana.

A Apadep entrevistou Asim Qureshi, diretor do grupo de defesa dos direitos humanos da ONG, que lidera uma equipe de pesquisadores na construção da compreensão da política global de combate ao terrorismo. Com especialização em áreas relacionadas ao direito internacional e islâmico, Asim Qureshi pesquisa a detenção ilegal e os abusos da guerra contra o terror desde 2003. Para isso, viaja por todo o Reino Unido e por outros países como Bósnia, Sudão, Estados Unidos, Quênia, Suécia e Paquistão, onde ele se tornou um especialista em detenção.

Em 2010, Asim Qureshi publicou o livro Rules of the Game (Regras do Jogo), que analisa políticas e detenções dentro da guerra contra o terror através de testemunhos detalhados de suas vítimas. Leia a seguir trechos desta entrevista, concedida por e-mail no mês de julho de 2013.

Como você começou a trabalhar com os presos da Baía de Guantánamo?

Para ser honesto, a Cageprisoners começou como um site concebido para aumentar a conscientização sobre a situação dos detidos de Guantánamo e incentivar as pessoas a pressionar seus governos contra a ilegalidade que ali ocorria. Logo após o nosso trabalho começar, percebemos que estávamos agindo como uma ponte na capacitação das famílias de detidos em Guantánamo, particularmente ajudando-os a encontrar uma representação legal. Um fenômeno interessante ocorreu, pois despertávamos uma grande confiança exclusivamente por conta da nossa identidade de organização muçulmana dos direitos humanos. Em pouco tempo, mesmo aqueles fora do contexto da Baía de Guantánamo começaram a entrar em contato conosco, e foi então que decidimos desenvolver os aspectos de pesquisa do nosso trabalho.

Com a liberação do primeiro grupo de prisioneiros britânicos de Guantánamo, nós tivemos a sorte de Moazzam Begg se unir à nossa organização. Desde então, temos participado ativamente junto às comunidades de prisioneiros libertos em todo o mundo e documentado suas histórias e as dificuldades enfrentadas durante e depois da prisão em Guantánamo.

“Se você examinar o panorama do combate ao terrorismo em todo o mundo, constatará que o número de violações de direitos humanos que estão ocorrendo em nome da segurança supera em muito a quantidade de casos realmente vinculados a atos de criminalidade”

 

Na sua avaliação, qual seria o melhor caminho para fechar a prisão de Guantánamo?

Simplesmente aplicando a Convenção de Genebra da maneira mais estrita possível. Se aqueles sob custódia são combatentes que supostamente cometeram crimes de guerra, então eles devem ser processados ​​por esses crimes no âmbito do direito humanitário internacional. Caso contrário, eles deveriam ser liberados, já que o conflito armado terminou no Afeganistão.

Há uma discussão no Brasil sobre a tipificação do crime de terrorismo. Quais os riscos disso e o que temos que levar em conta nesse debate? 

O terrorismo é um termo tendencioso, que basicamente não significa muito do ponto de vista do direito criminal. A maioria dos países conta com um sistema de justiça criminal completamente adequado para contemplar os atos de violência política, qualquer legislação adicional é completamente desnecessária. Se você examinar o panorama do combate ao terrorismo em todo o mundo, constatará que o número de violações de direitos humanos que estão ocorrendo em nome da segurança supera em muito a quantidade de casos realmente vinculados a atos de criminalidade.

Por que você decidiu trabalhar com a questão dos direitos humanos?

No início do meu mestrado em direito, decidi mudar o meu campo de estudo do direito empresarial para o direito internacional e os direitos humanos. Minha principal motivação para a mudança foi ver a maneira como os detidos na Baía de Guantánamo estavam sendo tratados, mas também a forma como a guerra global ao terror resultou em políticas desproporcionais e fora de controle.

Naquela época, eu decidi focar minha dissertação de mestrado sobre o termo “combatente ilegal”, para que eu pudesse compreender em que medida o exército e o governo dos EUA estavam violando as normas do Direito Internacional Humanitário. Ainda não sabíamos muito sobre a tortura e os programas de rendição que estavam ocorrendo, mas apenas a violação das Convenções de Genebra foi o suficiente para considerar esta uma anomalia legal completa. Durante minha pesquisa, me deparei com o site da Cageprisoners, e foi nesse momento que escolhi me envolver nesse trabalho voluntário.

“Eu acredito que uma vez que injetemos empatia em nossas estratégias de detenção, estaremos mais perto de compreender como a lei, a punição e a reabilitação estão interligadas. Tratá-las como áreas díspares só resulta em danos de longo prazo para a sociedade.”

 

As prisões brasileiras são consideradas grandes violadoras de direitos humanos. Como a comunidade jurídica internacional pode ajudar a mudar esta situação?

Para mim, em primeiro lugar, é preciso haver uma mudança completa de paradigma na forma como as pessoas veem a detenção. Existe uma cultura que se desenvolveu em todo o mundo que não vê mais a detenção como uma punição, mas praticamente espera que haja mais sanções do que a restrição de liberdade. Eu acredito que uma vez que injetemos empatia em nossas estratégias de detenção, estaremos mais perto de compreender como a lei, a punição e a reabilitação estão interligadas. Tratá-las como áreas díspares só resulta em danos de longo prazo para a sociedade.

O que a prisão de Guantánamo representa em termos de violação dos direitos humanos?

É importante compreender que a Baía de Guantánamo, como centro de detenção, não é o pior do mundo. Na verdade, ele provavelmente não se aproxima de muitos dos locais de detenção que rotineiramente se dedicam às práticas de tortura. No entanto, como símbolo de detenção arbitrária e abuso, não há nenhuma prisão no mundo como ela. É a cultura da Baía de Guantánamo, como grande exemplo dessa ilegalidade, que tem permitido ao mundo naturalizar e legitimar as práticas de abuso e tortura.

Lembro-me de quando fazia uma pesquisa no campo de refugiados Hagdera, no nordeste do Quênia, e a melhor descrição que uma comunidade somali confinada ali há 17 anos pôde dar foi dizer que era como se estivessem na Baía de Guantánamo. É esta infecção cultural pela qual Guantánamo é responsável, transformando-se em um sinônimo de maus tratos e detenção arbitrária sistemática. O advogado alemão de direitos humanos, Bernhard Docke, certa vez se referiu a “Guantanamização” da política de imigração alemã. De maneira semelhante, alguns detidos por mais de uma década sem acusação ou julgamento no Reino Unido referiram-se a sua prisão, Long Lartin, como a “Long Lartanamo”. Assim, até mesmo na linguagem, Guantánamo fixou-se como a própria representação de ilegalidade.

Como você enfrenta o questionamento de que seu trabalho seria a defesa de “terroristas”?

É uma questão muito simples. Nossa preocupação é garantir o devido processo legal, e não apenas uma aparência do devido processo legal, sempre de acordo com os padrões internacionalmente reconhecidos. Um dos problemas de se falar sobre devido processo legal é que governos tem se empenhado em subverter seus próprios sistemas jurídicos a fim de garantir certos interesses. Países da Europa ocidental, por exemplo, introduziram várias formas de provas secretas para lidar com casos de segurança nacional. Eu diria que, enquanto os governos mantiverem essa postura, eles estarão violando o devido processo pela falta de moralidade no manejo da Justiça.

Como é o processo de reintegração à sociedade dos presos que passaram por Guantánamo?

Falar em reintegração de detentos de Guantánamo é de certa forma ridículo, especialmente no contexto daqueles que foram lançados de volta ao mundo ocidental. Há exemplos de pessoas, como os muçulmanos chineses, que foram enviadas para países como Bermudas e Albânia, onde eles não tiveram acesso a qualquer assistência e nem mesmo entendiam o idioma. Eles basicamente são colocados numa situação de detenção cultural, devido à falta de oportunidades que tiveram. Os lugares onde ex-detentos liberados sem acusação tiveram mais acesso à assistência social foram em países muçulmanos como o Sudão e a Arábia Saudita.

Acho que ainda precisamos refletir sobre as necessidades após a liberação e o repatriamento. Muitos daqueles que estiveram em Guantánamo enfrentaram algumas das formas mais severas de trauma, com alguns tendo sido presos sem acusação por mais de uma década. Mas não é apenas com o trauma de seu período de detenção que temos que lidar. Quando estes homens são liberados, eles retornam para famílias que estão irreconhecíveis por várias razões. Alguns homens voltam para crianças que nunca conheceram, já que suas esposas estavam grávidas no momento de seu seqüestro. Um exemplo é o de Shaker Aamer, que está detido há 11 anos sem acusação ou julgamento. Ele tem quatro crianças britânicas, o último dos quais ele nunca conheceu. Mal podemos imaginar o trauma que enfrentará essa família depois de um período tão longo de separação.

Todas essas várias facetas do trauma têm sido largamente negligenciadas pelos governos em suas tentativas de ajudar os detentos, e são questões que podem ter consequências muito graves e prejudiciais para eles.

Veja mais sobre a atuação da ONG em www.cageprisoners.com .

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