Passados 21 anos da criação do Código de Defesa do Consumidor, muitas mudanças aconteceram no que se refere às relações de compra e venda. Embora hoje a Lei nº 8.078/90 seja considerada uma das mais modernas do mundo, a sociedade brasileira já pede alterações para que se possa organizar melhor as relações comerciais entre as partes. Questões como comércio eletrônico, ações civis públicas e superendividamento, por exemplo, precisam ser contempladas. Nesse sentido, a Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) instituiu uma comissão para contribuir com a comissão de juristas criada no âmbito do Senado Federal para analisar os anteprojetos de lei que alteram o CDC. O objetivo era garantir a Defensoria Pública como instituição imprescindível para a garantia desses direitos à população mais carente. A relatoria do grupo de defensores coube à defensora pública do Rio Grande do Sul, Adriana Burger. Na seguinte entrevista, realizada por telefone de Porto Alegre, ela fala à APADEP sobre os trabalhos da comissão do Senado, explica as contribuições da Defensoria aos debates e contextualiza a questão do superendividamento:
Ao centro, a defensora pública Adriana Burger, durante reunião na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2003, dando início a primeira pesquisa no Brasil sobre superendividamento (Fonte: arquivo pessoal)
APADEP: Dra. Adriana, como avalia os trabalhos da comissão de juristas do Senado constituída para elaborar o novo Código de Defesa do Consumidor?
Adriana Burger: O trabalho que vem sendo desenvolvido pela comissão de juristas do Senado é louvável. Eles têm feito audiências públicas para ouvir a população, sendo que eles mesmos participam das audiências. É um trabalho de qualidade. A prática de uma democracia muito amadurecida, participativa. Eles ouvem as instituições, a sociedade civil. Muito importante esse processo.
APADEP: E qual a importância da participação da Defensoria? Quais as principais contribuições dos Defensores Públicos?
Adriana Burger: Nossas contribuições são fruto de um trabalho coletivo da comissão de defensores públicos que a ANADEP constituiu para auxiliar nos trabalhos. Acho de importância fundamental que nós possamos nos manifestar com esse olhar da Defensoria, que é um olhar diferenciado, de atuação de um órgão jurisdicional em prol, não raras vezes, de uma população duplamente vulnerável, ou seja, de carentes, mas também idosos, analfabetos, analfabetos funcionais. Nós tutelamos para estes consumidores que são ainda mais vulneráveis. Levarmos um olhar de uma instituição voltada à importante tarefa de garantir a cidadania para essa enorme parcela da população é importantíssimo.
Adriana Burger (ao centro, primeira da esquerda para a direita) em meio a Comissão de Defensores Públicos instituída pela ANADEP para contribuir com os debates sobre a reforma do CDC (Fonte: arquivo pessoal)
APADEP: Quais as principais contribuições já entregues pela ANADEP à Comissão de juristas?
Adriana Burger: Pareceu-nos muito importante a sugestão de incluirmos esclarecimentos no inciso I do artigo 5° do CDC, que trata da execução da política nacional das relações de consumo, dentre outras medidas, a manutenção de assistência jurídica integral e gratuita para o consumidor vulnerável, incluir “exercida pela Defensoria Pública”. Buscamos ter coerência com o artigo 134 da Constituição Federal que determina que a instituição é essencial à função jurisdicional do Estado. Parece-nos muito importante este esclarecimento, de que essa proteção jurídica, integral e gratuita, para o consumidor vulnerável, seja exercida pela Defensoria Pública. No inciso II, que já determinava a proteção do consumidor no âmbito do Ministério Público, nós sugerimos incluir os Núcleos de defesa do consumidor no âmbito da Defensoria, porque sem dúvida, essa inclusão na política nacional das relações de consumo vem se coadunar com a pretensão da comissão de juristas de incluir a Defensoria Pública como órgão legitimado para a tutela coletiva do consumidor. Já no artigo 6° do CDC, que trata dos direitos básicos dos consumidores, sugerimos no inciso XIV incluir “educação em direitos”, no trecho que fala em “prevenção e tratamento do superendividamento”. A educação em direitos, uma atuação que bem caracteriza a Defensoria, também é muito importante que seja inclusa.
APADEP: Há uma inserção específica relacionada aos analfabetos também, correto?
Adriana Burger: Sim, e antes, no artigo 26, sugerimos a instauração de procedimento administrativo perante a Defensoria Pública até o seu encerramento, como forma de obstar a decadência e prescrição. Em seguida, vem nossa sugestão do artigo 39, que trata das práticas abusivas, no trecho “incluir, assediar, ou pressionar consumidor, em especial se idoso”, aí incluiríamos “analfabeto”, “doente ou em estado de vulnerabilidade agravada”. Essa sugestão, inclusive, foi muito bem recebida pela professora Cláudia Lima Marques, uma das integrantes da comissão de juristas do Senado. E uma outra sugestão, também muito importante, diz respeito ao cadastro, no artigo 43, uma vez que essa é uma demanda frequente na Defensoria. Os nossos assistidos muitas vezes pagam todas as dívidas, com juros abusivos, e ainda têm que fazer um grande esforço na pretensão de limpar o nome. E isso demora muito tempo. Então, no parágrafo 6°, estamos sugerindo que se determine o prazo máximo de cinco dias após a quitação para retirada do nome do consumidor inscrito em cadastros de proteção ao crédito. Às vezes a pessoa faz um enorme esforço e a empresa esquece de excluir o nome, ou exclui um mês, 2 meses depois.
APADEP: E há uma alteração sugerida referente a ações civis públicas também, não é?
Adriana Burger: Sim, com relação às cláusulas abusivas, no artigo 51, parágrafo 4°, em que diz que é facultado a qualquer consumidor ou entidade que represente os consumidores, requerer ao Ministério Público que ajuíze ações competentes. Neste trecho, a gente incluiu a Defensoria Pública. E por razões óbvias, pois nossa legitimidade para ações coletivas é garantida e é muito importante que a reafirmemos no âmbito do CDC. Lembrando sempre que a Defensoria é uma instituição que atende uma massa de cidadãos, ou seja, é primordial que demandas repetitivas sejam tratadas de forma adequada para uma massa, pois não é possível que tenhamos inúmeras ações repetidas.
APADEP: Teria um exemplo? Gostaria que citasse um caso prático que chega à Defensoria de uma demanda coletiva comum no âmbito da defesa dos direitos do consumidor…
Adriana Burger: Existem ações importantes com relação à telefonia, planos de saúde, de aumentos abusivos para os idosos, por exemplo. Há também com relação a boletos bancários, que é sempre importante o ajuntamento de uma documentação adequada para auxiliar na elaboração da ação. Dentre outras, claro.
APADEP: E como estão sendo recebidas as propostas da Defensoria pela Comissão de Juristas?
Adriana Burger: Eles vêm recebendo muito bem as contribuições. Inclusive partiu da comissão do Senado uma reunião técnica com a Defensoria, que aconteceu na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em setembro. E o que nós precisamos é depois acompanharmos a tramitação do trabalho que a comissão de juristas vai entregar ao Senado Federal. Seria importante que os defensores que acompanharam as nossas sugestões consigam articular com os senadores de cada estado, falando sobre a importância dessas contribuições e pelo fato de visar o aprimoramento de uma lei que tem uma incidência diuturna na vida de todos as cidadãos. Consumir é mais do que uma opção, é uma contingência. Você acorda consumindo a energia elétrica, a qualidade da água na sua casa, todas são relações de consumo e a Defensoria Pública tem condições de contribuir muito ao atender esse enorme manancial de pessoas. Acho muito importante também nós sermos chamados para essas matérias. A Defensoria atua muito na área penal, no sistema carcerário, no direito de família, em regularização de moradias, uma série de coisas importantes. Mas, de certa forma, por algum tempo, alguns setores do mundo jurídico olhavam para o direito de consumidor como algo elitista. O que na verdade não é! Essa quebra de paradigma é muito importante. E nos últimos oito anos houve uma inclusão de milhões de consumidores, que passaram a consumir produtos e serviços e são sim vulneráveis. A pessoa que passa a ter um cartão no banco para receber um salário às vezes contrata um empréstimo para passar um feriado, final de semana. Então, há uma necessidade de refletir sobre essas relações de consumo que estão incluindo uma gama imensa de pessoas extremamente vulneráveis.
APADEP: Sim, aí entrarmos na questão do superendividamento. Gostaria que nos explicasse o conceito, Dra, e como ele atinge principalmente as pessoas mais carentes hoje no Brasil…
Adriana Burger: O superendividamento é a impossibilidade de fazer frente às suas dívidas. Nós usamos como paradigma o direito francês, a legislação francesa de 1989, que depois teve uma alteração em 2003. Houve uma primeira pesquisa sobre o perfil dos superendividados feita aqui no Rio Grande do Sul, em 2004, com os assistidos da nossa Defensoria, da capital, principalmente. E o que se percebeu é que 70% dos consumidores são passivos e apenas 30% são ativos. É muito importante compreendermos isso. O consumidor superendividado passivo é aquele que não consumiu mais do que ele deveria, mas sofreu um acidente da vida, ou seja, uma doença, uma morte, etc. Apenas 30% são consumidores que consumiram mais do que tinham condições. Considerando esse enorme apelo do crédito, essa facilitação de crédito que induz ao consumo…porque nem sempre a facilidade do crédito é favorável ao consumidor. A pessoa passa a ter necessidade de trocar o fogão, que antigamente durava 20 anos. Então, quem concede o crédito também é responsável. Deve-se fazer uma análise criteriosa, uma recomendação, perguntar se a pessoa realmente precisa pegar a linha de crédito. E quem é esse superendividado? Ele passa por um tratamento, um processo piloto de audiências, de acertos, em que os credores são convidados. Ali, o devedor demonstra tudo que deve, sua boa-fé, e pede um reescalonamento da dívida. Ele quer pagar, mas precisa que o valor seja reescalonado.
APADEP: Mas essa caracterização de superendividado é proporcional à renda da pessoa?
Adriana Burger: Sim, sempre. A pessoa tem que indicar o que nós chamamos de “mínimo vital”, que é um mínimo para se viver com dignidade. Por exemplo, a pessoa ganha 800 reais, mas paga 300 de aluguel, 100 pra comer, 100 da creche do filho, etc, e sobram 300 reais por mês. Esse vai ser o início. A gente aplica o questionário, marcamos na pauta e os credores são convidados para as audiências de conciliação. Nelas, são reunidos os credores, é exposta a situação deste consumidor superendividado e consegue-se identificar uma parcela para ele viver dignamente, além do que ele poderá usar para amortizar as dívidas. As audiências de conciliação são muito importantes, pois evitam inúmeros outros processos. Afinal, qual seria a opção jurídica para esses credores? Para o devedor não há opção e, para os credores, ajuizar uma ação, na maioria das vezes, não existe bem para ser penhorado. As audiências possibilitam a negociação, de forma reescalonada, porque quem concede crédito também é responsável pela avaliação da capacidade de adimplir por um tempo esse consumidor que está se endividando. E há que se elogiar a postura desses credores que, na maioria das vezes, percebem a boa vontade do consumidor e têm proporcionado descontos muito significativos. Temos casos de descontos de até 40% do valor da dívida, para viabilizar esse reescalonamento. A regra é não abater a dívida, apenas reescalonar o vencimento, postergar. Mas não raras vezes há uma sensibilidade por parte dos credores, que até no começo surpreendeu positivamente quem estava trabalhando com isso. Ao ver a pessoa superendividada, que está desempregada, às vezes com a mulher grávida, o credor se dispõe a reescalonar a dívida. E é importante destacarmos que no Rio de Janeiro isso é feito no âmbito da Defensoria, pelos próprios defensores públicos. Tem muito mérito o Núcleo de Defesa do Consumidor do Rio de Janeiro. Já aqui no Rio Grande do Sul, por iniciativa de duas juízas, isso vem acontecendo no âmbito do poder judiciário. Elas fizeram inicialmente nas suas comarcas e depois isso passou para Porto Alegre, tendo inclusive ganhado menção honrosa no Prêmio Innovare. Isso é bom para o consumidor? Sim, é ótimo. Mas inegavelmente para o poder judiciário também, pois evita a judicialização de demandas. Quem promoveu isso no Rio de Janeiro foram os defensores públicos e aqui no Rio Grande do Sul os juízes. Ou seja, quem quer contribuir, contribui. Isso mostra que não existe uma maneira, mas existem pessoas comprometidas, querendo mudar a situação. E elas podem fazer isso na esfera das suas instituições.