O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 25 anos este mês. Neste período, apenas um de seus 267 artigos foi considerado parcialmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 869, julgada em 1999, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo, que estabelece dois dias de suspensão a órgão de imprensa ou emissora de televisão que divulgue, sem autorização, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo à criança ou adolescente a que se atribua ato infracional.
Por unanimidade, o Plenário considerou que o texto contrariava o preceito constitucional, que assegura a liberdade de expressão (artigo 220 da Constituição Federal). Seguindo o voto do então relator, Ministro Ilmar Galvão (aposentado), a Corte entendeu que este tipo de sanção – suspensão de circulação ou da programação – representa censura prévio, o que é vedado pela Constituição Federal. As outras punições previstas para esta infração (multa e apreensão da publicação) não foram questionadas pela PGR.
Em diversos outros casos julgados, o STF, por meio de habeas corpus (HC), tem garantido a efetividade de direitos previstos no ECA. Em um dos casos, discutido no HC 122886, a Primeira Turma do STF entendeu, por unanimidade, que a condenação de adolescentes à medida socioeducativa de internação, apenas em razão da gravidade abstrata do ato infracional praticado, equivale a descumprimento do ECA. Na ação, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo questionou sentença proferida pela Justiça paulista, na qual dois adolescentes, apreendidos com 179 gramas de maconha, foram condenados ao cumprimento de medida socioeducativa de internação por prática de ato infracional análogo ao tráfico de drogas.
Segundo a Defensoria Pública de São Paulo, os jovens são primários e de bons antecedentes, e o artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) é taxativo ao admitir a internação apenas em decorrência de ato cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, de reiteração de conduta ou do descumprimento de medida imposta, também de forma reiterada. No caso, a sentença impôs a medida unicamente em razão da gravidade do ato praticado. Segundo o relator do HC, Ministro Luís Roberto Barroso, a decisão atacada ofende a garantia da excepcionalidade na aplicação de medida restritiva de liberdade, determinada pela Constituição Federal, e contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente.
No HC 98518, a Segunda Turma do STF concedeu parcialmente a ordem para permitir a um adolescente, cumprindo medida socioeducativa, a realização de atividades externas e visitas à família, sem a imposição de qualquer condição pelo Juízo da Vara da Infância e Juventude. Os Ministros consideraram que o artigo 120 do ECA garante esse direito, independentemente de autorização judicial. Além disso, observaram que o artigo 227 da Constituição Federal explicita o dever do Estado de assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar.
“O objetivo maior da Lei 8.069/1990 é a proteção integral à criança e ao adolescente, aí compreendida a participação na vida familiar e comunitária. Restrições a essas garantias somente são possíveis em situações extremas, decretadas com cautela em decisões fundamentadas, o que, no caso, não se dá”, argumentou, à época, o relator do HC, Ministro Eros Grau (aposentado).
Já no HC 70389, o Plenário do STF entendeu que dois policiais militares, acusados de tortura contra adolescentes, deveriam ser julgados pela Justiça Estadual de São Paulo e não pela Justiça Militar. No entendimento dos Ministros, a norma prevista no artigo 233 do ECA, tipificando crime de tortura contra crianças e adolescentes, configurava legislação especial, sobrepondo-se ao Código Penal Militar.
No voto vencedor, o Ministro Celso de Mello salientou que o policial militar que, a pretexto de exercer atividade de repressão criminal, impõe danos físicos ao adolescente que está, eventualmente, sujeito a seu poder de coerção para intimidá-lo ou coagi-lo à confissão de delito “pratica, inequivocamente, o crime de tortura, tal como tipificado no artigo 233 do ECA”. Este dispositivo foi posteriormente revogado pela Lei 9.455/1990, que tipifica os crimes de tortura em relação a todas as pessoas.
O Estatuto
Fruto de uma ampla negociação com a sociedade civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma norma que tornou a legislação infraconstitucional brasileira compatível com o novo paradigma introduzido pela Constituição Federal de 1988, que passou a atribuir à família, à sociedade e ao Estado a responsabilidade compartilhada de assegurar, com prioridade, os direitos fundamentais de crianças e de adolescentes. A lei instituiu a doutrina da proteção integral e reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direito e não meros tutelados.
Segundo o artigo 227 da Constituição, é dever de todos assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão“. A Lei 8.069/1990, que instituiu o Estatuto, foi pautada por esse comando constitucional e orientada por diretrizes traçadas na Declaração Universal dos Direitos da Criança e na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovados pela Organização das Nações Unidas (ONU). A lei foi sancionada, sem vetos, em 13 de julho de 1990.
Se a legislação anterior dava ênfase à doutrina da situação irregular, o novo paradigma trouxe diversos novos pontos, que vão desde a convivência familiar e comunitária, tutela, guarda e direitos fundamentais, como saúde e educação. Uma das inovações mais importantes é a criação dos Conselhos Tutelares aos quais cabe, no âmbito dos municípios, zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Os Conselheiros são responsáveis pelo atendimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e até mesmo por encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal praticada contra este público.
Legislação anterior
O primeiro documento legal brasileiro para os menores de 18 anos, o Código de Menores, foi promulgado em 1927. Embora representasse um avanço na proteção das crianças, ainda se baseava em conceitos de assistencialismo e de inferioridade em relação aos adultos. O primeiro Código foi direcionado para crianças e adolescentes em situação irregular, classificados como “desvalidos” ou “delinquentes”. No Estado Novo foi implantado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) que funcionava, na prática, como sistema penitenciário para “menores infratores”.
Em 1964, foi editada a Lei Federal nº 4.513, autorizando o Executivo a criar a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor, incorporando atribuições do extinto SAM e, dentre as quais, as de recolher os menores infratores – assim à época chamados – a estabelecimentos “adequados, a fim de ministrar-lhes educação, instrução e tratamento sômato-psíquico”. Em 1979 foi editado novo Código de Menores (Lei Federal nº 6.697), disciplinando a assistência, proteção e vigilância. Essas leis foram expressamente revogadas a partir da vigência do ECA.
FONTE: STF