A atendente de telemarketing Joana Neves (*) suportou a dor de quatro agressões para não denunciar o filho. Mas, na madrugada do dia 21 de julho de 2012, ligou para a polícia. Ela havia levado uma cabeçada na boca depois de oferecer uma xícara de café com leite. Quando os policiais chegaram, Felipe Neves (*) dormia, e Joana já não conseguia falar. “Levaram meu filho sem saber que ele é doente. E ele foi preso”, lamenta.
O rapaz, hoje com 22 anos, sofre desde os 16 de esquizofrenia hebefrênica, doença ligada a distúrbios afetivos que se manifesta a partir da puberdade. Felipe foi processado por agressão pela Justiça comum. Mesmo com a realização de um laudo que atestou o quadro de insanidade mental, ele ficou preso ilegalmente no Centro de Detenção Provisória de Santo André, na região metropolitana de São Paulo, por um ano e meio.
Além de Felipe, estima-se que outros 430 infratores com problemas psiquiátricos convivem com os demais presos nos estabelecimentos penitenciários do estado de São Paulo – sem remédios específicos nem acompanhamento médico adequado. O Ministério da Justiça não sabe informar quantos se encontram na mesma situação em todo o país.
São pessoas que cometeram crimes por não terem consciência do caráter ilícito do ato que praticaram ou que estavam em pleno surto psicótico. Por falta de vagas na rede pública de saúde e em hospitais de custódia – mais conhecidos como manicômios judiciários –, eles ficam em presídios comuns por tempo indeterminado.
Uma pesquisa pioneira coordenada por professores de diversas universidades brasileiras e publicada no exterior mostra a dimensão do problema: a prevalência de distúrbios psíquicos no sistema penitenciário paulista é duas vezes maior do que na população em geral.
O primeiro levantamento em grande escala sobre o perfil epidemiológico no cárcere aponta que 12% dos detentos possuem transtornos mentais severos. O estudo foi feito com base na análise de cerca de 1.800 presos no estado de São Paulo.
“Eles passam por todo o processo judicial sem que sejam identificados como pacientes graves. Não existe uma triagem”, afirma Sérgio Baxter Andreoli, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor do estudo.
Um desses pacientes é Rafael Oliveira (*). Portador de transtornos mentais, ele tem o corpo coberto de marcas: se corta e faz novos ferimentos sobre as cicatrizes. Ele está preso no litoral de São Paulo e não recebe qualquer tipo de tratamento psiquiátrico. Por sorte, os colegas de cela entendem a situação e tentam ajudá-lo a se controlar.
Loucura como crime
Pela lei, a pessoa que sofre de transtornos mentais e comete um crime deveria ser absolvida no processo desde que haja um nexo causal entre a doença e o delito. Com base em laudos médicos, o juiz determina o cumprimento de uma medida de segurança em hospitais de custódia ou em serviços ambulatoriais da rede pública de saúde. A determinação é válida por tempo indeterminado, até que fique provado que o paciente não representa mais um perigo e pode voltar ao convívio social.
Em todo o país, no entanto, essas decisões judiciais não têm sido cumpridas. Felipe Neves teve a pena por agressão convertida em medida de segurança em dezembro de 2012, cinco meses após o crime, mas permaneceu na prisão. Um pedido do Ministério Público para que ele fosse solto foi indeferido pela Justiça.
Na decisão, a magistrada argumenta que seria preciso aguardar a disponibilidade de vagas, pois são “insuficientes para atender a crescente demanda” e ressalta que a “lista cronológica é o único meio justo” para o controle das inclusões dos pacientes em estabelecimentos de tratamento psiquiátrico.
No final de 2013, 917 pessoas estavam na fila por uma vaga em manicômios judiciários no estado de São Paulo, incluindo os 431 pacientes que estão em prisões. Os dados estão em uma lista da 5ª Vara de Execuções Criminais, obtida pela DW.
A Defensoria Pública já fez mais de 400 pedidos de habeas corpus na Justiça, ganhou a maioria dos casos em primeira ou segunda instância, mas as determinações para a retirada dessas pessoas do sistema penitenciário não estão sendo respeitadas.
“É inadmissível que esses pacientes estejam nos presídios. Tudo por causa da falta de estrutura do sistema”, diz o defensor público Patrick Cacicedo.
Hospital como prisão
O jovem Felipe conseguiu deixar o presídio apenas em abril deste ano. Ele agora cumpre a medida de segurança em uma ala que funciona como manicômio judiciário na Penitenciária 3 de Franco da Rocha, na Grande São Paulo. “É igual a um presídio comum. A diferença é que eles amontoam quem tem problemas mentais num mesmo lugar”, diz a mãe do rapaz.
Joana Neves faz uma viagem de cerca de três horas para ver o filho. E cada visita é uma cicatriz a mais. “É como cachorro num canil. Todos são colocados em uma jaula. Felipe está num estoque de gente. Dá para se ter ideia do que é ter um filho num lugar desse?”, questiona.
Desde que chegou ao hospital de custódia, ela percebe que o filho está com o comportamento alterado. “Eles dão o mesmo remédio para todos, um calmante de dia e outro à noite. Felipe está sempre chorando, se sentindo acuado, com medo de conversar com as pessoas.”
Uma fiscalização do Conselho Regional de Medicina de São Paulo realizada no ano passado nos três estabelecimentos de custódia do estado mostra que esses espaços quase nada têm de terapêuticos: nem sempre há equipes de plantão, os prontuários não são preenchidos adequadamente e as dependências são precárias.
“O cheiro fétido na cozinha se mistura ao cheiro de dejetos humanos e de cigarro das alas. Muitos levam restos de comida consigo e guardam para se alimentar depois e essa comida fica apodrecendo”, conta Quirino Cordeiro, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria. “Eles também não recebem atenção mínima em relação à saúde clínica. Vimos um paciente com HIV que não tinha sequer passado por exames. A situação é deprimente.”
De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 3.688 pacientes cumprem medida de segurança em 33 hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico do país.
Felipe está na lista de pedidos de habeas corpus da Defensoria Pública de São Paulo. O objetivo é que ele deixe de cumprir a medida de segurança e seja tratado na rede pública de saúde. Os advogados argumentam que, desde que foi preso, ele não passou por nenhuma reavaliação clínica para se saber se ainda deve permanecer internado no hospital de custódia.
“As conseqüência da medida de segurança são absolutamente gravíssimas. Assemelha-se, em muito, a uma condenação a prisão perpétua”, afirma o defensor público Marcelo Carneiro Novaes.
A mesma estratégia é utilizada para o caso de Lucas da Silva (*), de 19 anos. Portador de retardo mental e acusado de tentativa de assalto, ele está preso no Centro de Detenção Provisória de Santo André, na Grande São Paulo, desde janeiro.
Os defensores se recusam a dar notícia da doença à Justiça para impedir a medida de segurança e evitar que o rapaz fique mais tempo preso do que a pena estabelecida para o crime pelo qual ele é acusado. “Meu filho precisa de tratamento. Que não demore muito”, diz Genole Silva (*), mãe do rapaz.
Esquecidos
Um em cada quatro indivíduos internados não deveria mais estar nos manicômios judiciários, por diferentes motivos: porque o laudo atesta a cessação de periculosidade; porque a sentença judicial determina a desinternação; ou porque a medida de segurança está extinta.
O estudo A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil – Censo 2011, organizado pela antropóloga Debora Diniz, também aponta que ao menos 18 pessoas estavam abandonadas nos manicômios judiciários do país havia mais de 30 anos. O levantamento investigou todos os dossiês existentes no ano de 2011.
“Eles acabam se tornando institucionalizados e é muito difícil pensar em alternativas para que esses indivíduos voltem a conviver em sociedade”, diz Luciana Brito, pesquisadora do Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), que participou do censo.
Segundo ela, existe uma inércia em todo o sistema envolvido na medida de segurança, desde a falta de peritos à demora para sair a sentença. “Depois de tanto tempo ali, eles deixam de ser perigosos e entram na categoria de abandonados até ganhar o status de desaparecidos. Ninguém se lembra mais deles”, comenta.
Para Maria da Conceição Paganele é difícil recordar o período de seis meses em que o filho esteve internado em um hospital de custódia. Daniel (*) é dependente de crack há 18 anos. “O manicômio é uma verdadeira loucura. É muito cruel. Eu saía de lá adoecida”, afirma a mãe.
No início de maio, Conceição acompanhava o filho até uma clínica psiquiátrica particular em Cotia, no interior de São Paulo. Seria a 20ª internação.
No meio do caminho, uma viatura da Polícia Militar parou o carro. Os policiais tinham um mandado de busca contra Daniel, que cinco anos atrás tentou furtar a bolsa de uma mulher, sob o efeito da droga. Ele foi preso e está sem tratamento em uma cadeia pública. “A única coisa que o Estado me ofereceu até agora foi punição”, diz a mãe do dependente químico.
(*) Os nomes foram alterados para preservar a identidade