A luta das mulheres por equidade é travada continuamente e não se esgota em um único dia, mas a data representa um marco simbólico importante de preservação da memória e renovação desse compromisso histórico.
A Defensoria Pública de São Paulo é composta majoritariamente por mulheres: somos 53% de Defensoras e 59% de servidoras. As mulheres são maioria também entre as usuárias: 77% das pessoas atendidas são mulheres. Desses 77%, 55% são mulheres negras.
Mais do que celebrar e homenagear as mulheres que compõem e ajudam a construir coletivamente a Defensoria Pública, enquanto entidade de classe que representa 93% das Defensoras e dos Defensores Públicos paulistas, a Apadep reafirma o seu compromisso e empenho na luta por equidade de gênero e suas interseccionalidades em todos os espaços, dentro e fora da instituição.
De fato, não há como pensar o acesso à justiça – que, como sabemos, vai muito além do acesso ao Judiciário, envolvendo o acesso a uma ordem jurídica justa – se não for a partir de uma perspectiva de gênero, raça e todas as interseccionalidades que atravessam as mulheres, sob pena de legitimarmos e perpetuarmos estruturas excludentes.
A Defensoria Pública tem a missão constitucional de promover os direitos humanos, combater as desigualdades estruturais e ser agente de transformação social. Devemos investir forças para potencializar essa capacidade transformadora – inclusive esse é um de nossos maiores capitais políticos – e isso também requer reconhecimento e respeito às interseccionalidades internamente. Devemos olhar com lentes de gênero.
Pensando nisso, no 8M de 2022, a Apadep protocolou uma proposta para que seja instituída uma Política de Valorização da Maternidade, da Amamentação e da Proteção à Primeira Infância na Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Em nossa visão, a proposta representa um avanço significativo na política de equidade de gênero da Defensoria Pública, ainda que seja possível avançar mais no futuro, inclusive no sentido da corresponsabilidade parental, pois sabemos que essa estruturação é contínua e fruto de construções históricas.
É natural que os avanços aconteçam acompanhando o robustecimento da própria instituição, mas acreditamos que passos concretos e efetivos precisavam ser dados e por esse motivo formulamos a proposta e iniciamos esse debate.
A função primordial do estabelecimento dessa política é distribuir de forma mais equilibrada os custos da maternidade, que tem sido suportados, de modo excessivo e desigual, pelas mulheres. Sua gênese parte da premissa de que o Estado – aqui, no caso, a Defensoria Pública – deve assumir o papel que lhe cabe na distribuição dos custos da maternagem. Uma política sólida e efetiva de valorização da maternidade certamente irá contribuir para a construção de uma Defensoria Pública mais democrática.
Durante os debates travados no Conselho Superior, a Associação buscou construir consensos e defendeu, de maneira enfática e assertiva, porém ética e respeitosa, que uma política pública que se pretenda efetiva, que verdadeiramente tenha potencial para reduzir a sobrecarga das mulheres mães na nossa instituição, não pode trabalhar com uma lógica de compensação do trabalho. Não pode transferir a essa mulher o ônus pela redução do trabalho que decorre do exercício do maternar.
Essa política pública tem de se valer de instrumentos que a tornem efetiva. Não se pode querer construir uma política pública sem qualquer ônus para a administração pública, sob a justificativa da legalidade estrita e da preservação do interesse público.
Demonstramos que a noção de interesse público não é atrelada somente à prestação de serviço público de assistência jurídica prestado pela Defensoria Pública. Ele precisa ser compatibilizado com outros interesses públicos de igual relevo, como os direitos fundamentais das mulheres e das crianças na primeira infância.
Após amplo e rico debate, a Política de Valorização da Maternidade, da Amamentação e da Proteção à Primeira Infância está em vias de ser finalizada, estando pendente de discussão no Conselho Superior apenas os pontos trazidos pela Ouvidoria, sob a perspectiva das usuárias do serviço da Defensoria Pública.
Nas votações, infelizmente não foi possível avançar em pontos que, em nossa visão, seriam relevantes e plenamente justificáveis no que se refere à segurança jurídica, como a possibilidade de manutenção do pagamento de atividade de especial dificuldade quando a atividade é considerada de risco (à mãe ou ao bebê) e não há possibilidade de compensação pela modalidade virtual ou por outra atividade; o direito ao gozo de licença maternidade em caso de natimorto e também em caso de dupla maternidade.
Defendemos que o valor jurídico considerado para o reconhecimento da licença-maternidade ou paternidade, no caso de nascimento com vida e posterior falecimento da criança, é o mesmo que objetiva assegurar a vantagem na hipótese de criança natimorta, qual seja: a proteção à gestação, viabilizando a recuperação do desgaste psicológico e físico do período.
Nesse sentido, a lógica de proteção à gestação subjacente à concessão da licença-maternidade ou paternidade no caso de nascimento com vida e posterior falecimento da criança é perfeitamente aplicável às hipóteses de criança natimorta, considerando que as duas regras buscam a preservação do mesmo bem jurídico, não fazendo sentido qualquer regra que, ignorando sua ratio, imponha discriminação às situações que devem ser igualmente protegidas pelo ordenamento jurídico.
No que diz respeito à dupla maternidade, defendemos que a interpretação dada aos artigos 7º, XVIII, e 39, § 3º, da CF/88, que dispõem sobre a licença maternidade, deve se coadunar com os atuais entendimentos jurisprudenciais acerca da união homoafetiva e da multiparentalidade.
A origem do direito à licença maternidade encontra razões não apenas nas circunstâncias pós-parto, como a amamentação ou a recuperação físico-psíquica da mulher que gestou, mas também na importância de tutelar o vínculo formado entre mãe e filho(a), sendo certo que a filiação não advém somente do parto.
Assim, configurada a entidade familiar, defendemos que o direito à licença maternidade é extensível à genitora não gestante, sob o fundamento de maximização de direitos fundamentais tanto das mães quanto da criança.
A titularidade da licença maternidade possui dimensão plural, recaindo sobre mãe e filho(a), de modo que o alcance do benefício não mais comporta uma interpretação individualista, fundada exclusivamente na recuperação da mulher após o parto. A licença também se destina à proteção de mães não gestantes que, apesar de não vivenciarem as alterações típicas da gravidez, arcam com todos os demais papéis que lhe incumbem na construção desse novo vínculo familiar.
Considerando que a Constituição alçou a proteção da maternidade a direito social (CF, art. 6º c/c art. 201), estabelecendo como objetivos da assistência social a proteção “à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice” (CF, art. 203, inc. I), é dever do Estado assegurar especial proteção ao vínculo maternal, independentemente da origem da filiação ou da configuração familiar que lhe subjaz.
A teoria da norma geral exclusiva, que exclui a juridicidade de situações não expressamente regulamentadas, não se aplica à garantia de direitos fundamentais e sociais. Ao contrário, quando envolvidos tais preceitos, a interpretação deve ser regida pela teoria da norma geral inclusiva, pela qual, na omissão da lei, deve o Judiciário decidir de acordo com a analogia, à luz dos artigos 4º e 5º da LINDB e do art. 140 do CPC, além, a toda evidência, da principiologia constitucional.
Em se tratando de garantia de direitos, incabível a alegação de que a ausência de legislação específica seja um fundamento para restrições de garantias, até porque a LINDB (Lei de Introdução das Normas de Direitos Brasileiro) prevê outras fontes do direito aplicáveis aos casos concretos.
Por todos esses motivos, celebramos os avanços obtidos na construção da Política de Valorização da Maternidade, da Amamentação e da Proteção à Primeira Infância, mas não podemos deixar de lamentar a perda da oportunidade de avançarmos ainda mais.
Neste 8M, a Apadep parabeniza as Defensoras Públicas pelo importante trabalho que desempenham em favor da população vulnerabilizada do estado de São Paulo e renova seu compromisso concreto inarredável de seguir atuando pela efetivação de seus direitos, dentro e fora da instituição.