A Presidência da República interpôs, em 10 de abril de 2015, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.296/DF junto ao Supremo Tribunal Federal, impugnando o parágrafo 3º do artigo 134 da Constituição Federal de 1988. Inserido por obra da Emenda Constitucional 74/2013, o dispositivo suscitado tratou de assegurar “autonomia funcional e administrativa e iniciativa de sua proposta orçamentária” à Defensoria Pública da União, em simetria com o parágrafo 2º do mesmo dispositivo que, desde 2004 (por força da Reforma do Judiciário – EC 45/2004), creditava às Defensorias Públicas Estaduais tal regime constitucional qualificado.[1] A despeito de a ADI voltar-se à impugnação apenas do parágrafo 3º do artigo 134, e não do seu parágrafo 2º (relativo às Defensorias Púbicas Estaduais), o pleito em questão ensejou a movimentação de entes federativos estaduais também contrários à autonomia da instituição. A título de exemplo, o Estado de São Paulo, por meio da Procuradoria-Geral do Estado, postulou o seu ingresso na ação na condição de amicus curiae, o qual foi acolhido. Também os Estados do Acre, do Amazonas, do Espírito Santo e de Roraima foram admitidos na ação na mesma condição processual de “amigos da corte”. Em 18 de maio de 2016, o Plenário do STF, por maioria de votos (8 a 2), indeferiu a medida cautelar, endossando o voto-relator da ministra Rosa Weber. Muito embora a “vitória preliminar” da Defensoria Pública no julgamento da medida cautelar, a página ainda não está virada até o julgamento final da ação, de modo que segue atual e importante o debate a respeito da questão.
Muitas são as possibilidades de análise da constitucionalidade da matéria objeto da ADI 5.296/DF, tanto pelo prisma formal quanto material. Abordando com precisão os diversos aspectos formais e materiais que orbitam a discussão e com posição compartilhada integralmente por este articulista, remete-se o leitor ao parecer elaborado pelo professor Daniel Sarmento a pedido da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef). A análise proposta neste singelo artigo, por sua vez, terá abordagem muito mais restrita, mas que, ao ver do seu subscritor, toca em ponto carente de maior compreensão e visibilidade no âmbito da comunidade jurídica, não obstante se tratar de questão nuclear (do ponto de vista da defesa dos direitos das pessoas necessitadas) atrelada à autonomia constitucional da Defensoria Pública.
Está-se a falar da defesa e promoção dos direitos fundamentais sociais (arrolados, exemplificativamente, no caput do artigo 6º da Constituição Federal de 1988) de titularidade dos indivíduos e grupos sociais necessitados. Trata-se de atuação da Defensoria Pública frontalmente contrária aos interesses do Poder Executivo, haja vista que são justamente os entes públicos (federal, distrital, estadual e municipal) aqueles que figuram no polo passivo das ações individuais e coletivas formuladas pela instituição em tal seara. É coincidência que justamente o Poder Executivo esteja por trás do ajuizamento da ADI 5.296/DF? Para este signatário, há sim, em grande medida, ação deliberada por parte do Poder Executivo Federal, posteriormente encampada por entes federativos estaduais, com o propósito de fragilizar a atuação da Defensoria Púbica e favorecer a blindagem das omissões e atuações insuficientes (à luz do princípio da proporcionalidade) dos entes federativos arrolados anteriormente, notadamente no campo dos direitos sociais. Em outras palavras, é possível afirmar que a ADI 5.296 revela a vontade política de afastar a Defensoria Pública do controle judicial de políticas públicas por meio do aviltamento da sua autonomia institucional.
Antes de avançar, é oportuno aclarar um pouco mais a relação entre Defensoria Pública, direitos sociais e pessoas necessitadas. É possível afirmar a existência de plena identidade entre os usuários dos serviços públicos prestados pelo Estado, por exemplo, nas áreas da saúde e da educação, e as pessoas necessitadas assistidas pela Defensoria Pública. No Brasil, exceção talvez apenas para o ensino público universitário (embora isso tenha se alterado nos últimos tempos por meio de ações afirmativas e políticas de cotas), são as pessoas de baixa renda os usuários habituais dos serviços públicos essenciais em todos os planos federativos. Como decorrência lógica disso, a omissão ou atuação insuficiente do Estado (normalmente, o Estado-Administrador) na promoção de políticas públicas em tais áreas sociais reflete diretamente na violação a direitos fundamentais de pessoas necessitadas. Isso, por sua vez, acarreta na reivindicação judicial dos direitos sociais pela Defensoria Pública em favor dos indivíduos e grupos sociais privados de tais direitos. Não são poucas as ações individuais (e, cada vez mais, também as coletivas) ajuizadas pela instituição para fazer valer direitos sociais (saúde, educação, moradia, alimentação, saneamento básico, transporte púbico, previdência e por aí vai) de titularidade dos usuários do serviço público prestado pela instituição. A “privação de direitos sociais”, para utilizar a expressão cunhada por Axel Honneth[2], atinge o mesmo grupo social titular do direito fundamental à assistência jurídica.
A Defensoria Pública, sem demérito ao Ministério Público (que, por exemplo, em matéria coletiva, tem priorizado áreas como proteção ambiental e improbidade administrativa[3]), é quem tem de modo progressivo (pelo menos nos locais onde a instituição se encontra presente e estruturada) protagonizado a defesa e promoção, tanto em sede extrajudicial quanto judicial, dos direitos sociais no âmbito do nosso Sistema de Justiça. Isso é uma decorrência lógica da própria identidade constitucional da Defensoria Pública. A violação aos direitos sociais, como tratado anteriormente, atinge a mesma parcela da sociedade brasileira que é a habitual usuária da assistência jurídica prestada pela instituição. Por essa razão, não se trata de algo provocado artificialmente pela Defensoria Pública para afirmar seu espaço no âmbito do Sistema de Justiça, mas sim de demanda social, tanto individual quanto coletiva (a depender do caso concreto), que é trazida cotidianamente pelos próprios usuários da assistência jurídica, como decorrência do atendimento prestado diretamente aos mesmos pelos Defensores Públicos.
No campo legislativo, além de o caput do artigo 134 da Constituição Federal de 1988 estabelecer o papel que cabe à Defensoria Pública desempenhar na promoção dos direitos humanos (entre eles, por óbvio, os direitos econômicos, sociais e culturais), também a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Lei Complementar 80/94, diante da profunda reforma efetivada pela LC 132/2009) estabeleceu, no seu artigo 4º, X, que compete à instituição “promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”.[4] Não é o caso aqui de avançar na temática da legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ação civil pública em prol da defesa de direitos sociais, questão já superada em razão do julgamento pelo STF da ADI 3.943/DF, inclusive objeto de artigo deste articulista nesta ConJur.
Mirando a estrutura do nosso sistema de Justiça, é importante pontuar a diferença institucional entre as Procuradorias (federal, estaduais e municipais) e a Defensoria Pública (federal e estadual). Muito embora seja legítima a defesa de alguma autonomia também para as procuradorias, até para que possam exercer uma verdadeira advocacia de Estado (e não mera advocacia de governo, a serviço do “governo de plantão”, como infelizmente é recorrente no nosso país), as mesmas atuam, em linhas gerais, na defesa dos interesses do Estado (em regra, do Poder Executivo) nos diversos planos federativos, e não necessariamente da coletividade (ou seja, do interesse público primário). E muito menos dos indivíduos e grupos sociais necessitados. A título de exemplo, nas ações que reivindicam direitos sociais (por exemplo, pedidos de medicamento ou vaga em creche), as Procuradorias encarregam-se de fazer a defesa dos entes estatais, antagonizando com a atuação da Defensoria Pública, que visará à efetivação dos direitos sociais sempre em favor das pessoas necessitadas. Resumindo, os procuradores atuam em favor dos entes estatais; os Defensores Públicos, das pessoas necessitadas.
Para esmiuçar um pouco mais a questão em termos práticos e aclarar a importância da sua autonomia institucional, é oportuna a referência aos Estados onde a Defensoria Pública esteve vinculada à estrutura do Poder Executivo. Tal realidade, como ocorria no próprio Estado de São Paulo antes da criação da Defensoria Pública paulista (por meio da Lei Complementar Estadual 988/06), fazia com que o serviço público de assistência jurídica fosse prestado pela Procuradoria de Assistência Judiciária, ou seja, órgão integrante da Procuradoria-Geral do Estado. Assim, em uma hipotética ação civil pública movida contra o Estado de São Paulo para o fornecimento de medicamentos, haveria, de um lado da relação processual, um procurador do Estado subscritor da referida ação civil pública e, de outro, um também procurador do Estado na defesa do ente estatal, sendo ambos subordinados ao mesmo “chefe” institucional (ou seja, ao Procurador-Geral do Estado).
A situação descrita, como se pode aferir de plano, é incompatível com o regime constitucional delineado para a Defensoria Pública e a prestação do serviço público de assistência jurídica, comprometendo sobremaneira o livre desempenho, de forma independente, das suas funções institucionais, em detrimento do acesso à justiça e da defesa dos direitos dos titulares do direito fundamental à assistência jurídica. A autonomia institucional, em se tratado da tutela e promoção de direitos sociais (mas o mesmo raciocínio também vale em grande medida para todas as áreas temáticas da sua atuação), é peça fundamental para o adequado desempenho das suas atribuições institucionais, tendo sempre em vista o papel essencial que lhe cabe exercer, no âmbito do nosso sistema de Justiça, no enfrentamento das mazelas sociais que afligem a população necessitada e a recorrente omissão (ou atuação insuficiente) dos poderes públicos, notadamente do Poder Executivo, em tornar acessível a tais pessoais os bens sociais básicos.
A falta de acesso da população pobre – e, portanto, vulnerável – aos seus direitos sociais e, acima de tudo, a uma condição de vida digna, por sua vez, tem sido recorrente na nossa história política e realidade socioeconômica. E, diante do atual cenário de crise econômica, tende a se agravar ainda mais. Tal situação implica muitas vezes negar a tais pessoas os mais básicos direitos fundamentais, ou seja, o seu direito-garantia ao mínimo existencial, inviabilizando o seu ingresso no pacto político-jurídico firmado por meio da nossa Lei Fundamental de 1988. A Defensoria Pública, por sua vez, coloca-se como uma peça-chave nesse cenário, correspondendo à opção vinculativa do Constituinte de 1988 no sentido de criação de uma organização e procedimento voltados à efetividade dos direitos fundamentais para todos, no sentido, aliás, de um acesso universal e igualitário. Por tal razão, a Defensoria Pública, assim como ocorre com o Ministério Público, integra o conjunto das instituições essenciais ao sistema de Justiça e assume a condição de uma garantia institucional fundamental (inclusive protegida pelo regime constitucional das cláusulas pétreas). Mas, para isso, a Defensoria Pública não pode abrir mão da sua autonomia, sob pena de fragilizar ainda mais a árdua tarefa de defender os direitos daqueles que mais necessitam da salvaguarda estatal para afirmar a sua condição jurídico-cidadã de sujeito de direitos.
[1] No caso da Defensoria Pública do Distrito Federal, a referida autonomia constitucional e equiparação com as Defensorias Públicas dos estados já havia sido assegurada por obra da Emenda Constitucional 69/2012.
[2] HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 216.
[3] V.o Relatório sobre a Tutela Judicial dos Interesses Metaindividuais (2007) elaborado pelo Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.cebepej.org.br/admin/arquivos/37d2eb26b555e0d79b3ae989da1b3215.pdf. Acesso em: 06 de junho de 2016.
[4] O ideário normativo delineado no parágrafo 2º e no parágrafo 3º do artigo 134 da Constituição Federal de 1988 foi reproduzido, notadamente em vista da atuação judicial em face do Estado (em especial, do Poder Executivo), no artigo 4º, parágrafo 2º, da LC 80/94, com redação conferida pela LC 132/2009, ao determinar que “as funções institucionais da Defensoria Pública serão exercidas inclusive contra as Pessoas Jurídicas de Direito Público”.
Tiago Fensterseifer é Defensor Público no estado de São Paulo. Doutorando e mestre em Direito Público pela PUC-RS, com pesquisa de doutorado-sanduíche junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social de Munique, na Alemanha (Bolsista da CAPES).
Publicada na revista Consultor Jurídico, 7 de junho de 2016, 10h58