Por Flávio Rodrigues Lélles
Nos dias de hoje percebe-se que já há vozes na sociedade proclamando a idéia de que em nome da segurança pública deveríamos reduzir direitos e/ou garantias individuais fundamentais.
Acontece que precisamos nos lembrar de que ao assumir o dever de dizer e aplicar o direito no caso concreto, atividade de prestação da tutela jurisdicional, substituindo-se à vontade das partes, o Estado não objetivou apenas solucionar os conflitos de interesses, mas sim resolvê-los com o máximo de Pacificação Social.
Vale dizer, a solução do conflito de interesse não se constituiu como um fim em si mesma, pois é imprescindível que ela seja um meio para a Pacificação Social.
Mas o que é, e como é que se dá essa Pacificação Social?
Conforme já antes afirmado, uma das principais características da jurisdição é a substitutividade, por meio desta o Estado substitui as pessoas envolvidas em dado conflito de interesses, e que por si mesmas não conseguiram dirimí-lo, para solucioná-lo de acordo com as regras jurídicas preestabelecidas para tanto.
Ocorre que essa substituição, que confere tamanho poder ao Estado, o Poder Judiciário, não é gratuita ou meramente unilateral, ao contrário, em troca nos é dada uma contrapartida, o estabelecimento de direitos e garantias individuais fundamentais.
Dentre esses direitos e garantias individuais fundamentais quer nos parecer que o mais importante, relativamente ao exercício de prestar a tutela jurisdicional, é o do devido processo legal ou do processo justo.
Devido processo legal que, a nosso sentir, abarca os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, eis que ao se assegurar às partes de um processo vasta oportunidade de demonstrar suas razões, e ao se lhes garantir a bilateralidade da audiência, informando o réu/acusado da existência do processo, e oportunizando-se a cada qual delas o direito de se manifestar sobre as alegações da outra parte, nada mais se está a fazer do que efetivar o processo justo.
Contudo, a pergunta ainda remanesce, o que é, e como é que se dá a Pacificação Social?
Pacificação Social, como escopo primordial e político da atividade de prestar a tutela jurisdicional, nada mais é do que a aceitação da decisão por parte daquele que perdeu a batalha/briga judicial.
Só isso?
Sim, só isso, mas essa aceitação não se dá pura e simplesmente, como que por um passe de mágica, para tal é necessário que aquele que perdeu esteja convencido de que tudo que podia ser feito o foi para tentar demonstrar que era ele quem estava certo, o que se dá somente com a aplicação irrestrita do princípio constitucional do devido processo legal, observados o contraditório e a ampla defesa.
Na verdade, muitas vezes a pessoa, no íntimo, ainda pode acreditar que estava certa, porém, se lhe foram dadas todas as oportunidades para convencer os julgadores de sua razão, e aquela delas se valeu, mas, ainda assim, não conseguiu sair vencedora, ela se conformará.
E aí está a única forma possível e efetiva de Pacificação Social em um Estado Democrático de Direito como o nosso, a pacificação por conformação.
Não se pode acreditar que aquele que perde e que terá que pagar, voluntariamente ou pela expropriação de seus bens ou com a privação da própria liberdade, o fará de forma pacífica, simplesmente porque o Estado-Juiz assim o decidiu.
É imprescindível que esta pessoa esteja conformada com a derrota, vez que esgotou todos os meios ao seu alcance para demonstrar a justeza de suas razões. Do contrário não se sentirá pacificada, mas sim injustiçada, constituindo-se em fator de novo conflito social.
É nessa perspectiva que o princípio do devido processo legal adquire relevo ainda maior, na medida em que é por meio da sua observância que às partes de um processo são assegurados o contraditório e a ampla defesa, podendo valer-se de todos os meios e recursos a esta inerentes.
Ou seja, não se alcançará a Pacificação Social que se almeja sem o implemento concreto dos direitos e das garantias individuais fundamentais, que, no âmbito do exercício de prestar a tutela jurisdicional, se efetivam com a observância irrestrita dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Ademais, no atual contexto de insegurança pública e de violência urbana surge a figura do Defensor Público e de sua atuação funcional, atrevendo-nos até a afirmar a existência da Função Social do Defensor Público, principalmente daquele que atua na área criminal, como elemento imprescindível para o alcance da aludida Pacificação Social.
A Defensoria Pública atua por meio de seus órgãos de execução, assistindo, na área criminal, aquelas pessoas carentes que não têm condições de pagar por um advogado, ou seja, mais de 90% dos acusados pela prática de crime ou de ato infracional (adolescentes infratores) estão ou deveriam estar assistidas por um Defensor Público.
O mesmo se diga de um dos maiores fatores que atualmente geram instabilidade social, que é a questão carcerária, seja dos presos provisórios, seja dos condenados. Só uma instituição com a missão constitucional atribuída à Defensoria Pública tem condições de, desde que devidamente aparelhada e com número suficiente de profissionais bem remunerados, atender à massa de pessoas que se encontram nos estabelecimentos prisionais.
Certo é que o preso pobre que estiver devidamente assistido por Defensor Público, com sua situação processual devidamente esclarecida e trabalhada junto aos órgãos respectivos do Poder Judiciário, em regra, não se constituirá em fator de instabilidade social, como os que temos presenciado nos veículos de comunicação social quase que diariamente.
O recente episódio ocorrido na comarca de Contagem/MG é ilustrativo do que se acaba de expor, ou seja, estivesse a Defensoria Pública Estadual efetivamente instalada em todas as comarcas do Estado, consoante determina a Lei Complementar Estadual nº 65 de 16/01/2.003, com a estrutura necessária para seu bom funcionamento, com o número de profissionais nela previstos e com remuneração compatível com a dos demais órgãos que exercem missão indispensável à função jurisdicional do Estado, a análise da situação prisional dos encarcerados provisórios ou definitivos imprimiria maior celeridade ao sistema, liberando as vagas necessárias nas penitenciárias no exato momento em que os vários benefícios previstos na Lei de Execução Penal fossem de direito, evitando-se a demora que hoje há para tais concessões, o que se configura como mais um fator de instabilidade em lugares que por si sós já se afiguram como de elevada tensão.
O mesmo se diga da atual situação caótica vivenciada no Estado de São Paulo, acredita-se que se a Defensoria Pública Estadual já estivesse efetivamente implementada e com ampla atuação, por exemplo, no âmbito da Execução Penal nos presídios e penitenciárias muitos dos seus assistidos presos, que, repita-se, configuram a esmagadora maioria da população carcerária pobre, não se envolveriam com facções criminosas. Não que estas não existiriam, mas seriam comandos inoperantes, visto que sem material humano para executar seus atos dentro e fora dos estabelecimentos penais, uma vez que os assistidos presos que tivessem orientação e o acompanhamento integral da execução de sua pena pela Defensoria Pública não se prestariam a tais atos, ante a possibilidade de perda dos benefícios já conquistados.
Daí a imperiosidade da percepção por parte de todos os outros órgãos que atuam no processo penal, Juízes e Promotores de Justiça, e, principalmente, da sociedade, de que ao atuar na defesa criminal, exercendo o seu munus com afinco, postulando todos os direitos previstos na legislação e, mormente, assegurando aos acusados em geral o respeito às garantias constitucionais fundamentais, decorrentes do princípio do devido processo legal, o Defensor Público está contribuindo de forma eficaz para a almejada Pacificação Social. Assim, mesmo quando o Defensor Público está diante de um crime praticado com extrema violência, máxime quando este alcançou grande projeção nos meios sociais, inclusive os de comunicação, e que todos os elementos de convicção até então existentes indiquem que o autor do fato é a pessoa por ele assistida, aí mesmo é que sua atuação deve ser pautada pelo maior zelo, defendendo com todos os recursos possíveis o respeito aos direitos e garantias individuais fundamentais do acusado, evitando os prejulgamentos e, principalmente, a execração pública.
Isso porque se acredita que somente com a atuação zelosa referida poderá ser obtida para o acusado assistido a pretendida Pacificação Social já mencionada.
Enfim, além da compreensão dos operadores do direito penal e da sociedade, acerca da atuação dos Defensores Públicos, é preciso que o Estado reconheça a necessidade de bem aparelhar a instituição Defensoria Pública e de dignamente remunerar seus membros, o que somente se dará com a implementação concreta de sua Autonomia, nos termos do que agora dispõe a regra contida no § 2º do art.134 da Constituição da República de 1.988, bem como com a urgente aprovação da PEC 487-A pelo Congresso Nacional, de modo que haja um real equilíbrio de forças entre o Estado-Acusador e o Estado-Defensor, garantindo-se ao cidadão pobre o direito de ter uma defesa efetiva.
É o que se espera, nem tanto pela Defensoria Pública e seus membros, mas principalmente para a sociedade brasileira.
Flávio Rodrigues Lélles
Defensor Público junto ao II Tribunal do Júri de Belo Horizonte.
Professor de Direito Processual Penal
Pós-Graduando em Ciências Penais