A Defensoria Pública como Instrumento de Consolidação da Democracia

Por Renato Campos Pinto De Vitto e André Luís Machado Castro

Por Renato Campos Pinto De Vitto e André Luís Machado Castro

Resumo

O artigo pretende situar a Defensoria Pública, como instrumento de concretização do acesso à justiça, nos processos de reforma do Judiciário em curso, avançando sobre o perfil e modelo de instituição mais adequado a este panorama de construção democrática que se reclama na América Latina, e em especial no Brasil
I – Introdução

Há 25 anos atrás, no contexto latino-americano, quase nenhum país vivia sob um regime democrático, do ponto de vista jurídico-eleitoral. Nesse interregno, a garantia de escolha dos Presidentes por meio de sufrágio direto, secreto e universal se disseminou de forma considerável. No entanto, o avanço democrático verificado no plano eleitoral, não foi capaz de responder às demandas decorrentes do enorme déficit social que continua marcando a realidade dos países latino-americanos.

De tal situação extrai-se um verdadeiro paradoxo, que é apontado e analisado, com extrema propriedade, no relatório denominado “A Democracia na América Latina” publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Se, de um lado avançamos consideravelmente na construção de democracias eleitorais, é fato que os dirigentes que chegaram ao poder por essa via não lograram concretizar, a superação dos problemas endêmicos da região, apresentando os resultados esperados para se fazer frente à crise social que assola tais países. Os dirigentes eleitos, de forma geral, não têm demonstrado capacidade de responder, a contento, às demandas de renda, emprego e serviços públicos, titularizadas por uma população marcada por um processo histórico de exclusão, em que, ainda hoje, mais de 40% (quarenta por cento) das pessoas vivem abaixo da linha de pobreza.

Pesquisa detalhada no relatório acima apontado, realizada mediante a entrevista de cerca de dezenove mil pessoas em dezoito países da América Latina, atesta que 56,3% da população acredita que o desenvolvimento econômico é mais importante que a democracia. Em outras palavras, a maioria da nossa população estaria disposta a sacrificar o regime democrático se, em contrapartida, lhe fosse dada a possibilidade de ter um ganho do ponto de vista sócio-econômico.

Tal quadro revela a insatisfação da população em geral com os Estados Democráticos e conduz à conclusão de que, ao contrário do que poderiam indicar as conquistas implementadas no tocante aos direitos civis e políticos, os regimes democráticos na América Latina não estão absolutamente consolidados.

De uma forma geral, a legislação dos países latino-americanos é pródiga na enunciação de diversos direitos, inclusive os sociais, econômicos e culturais, havendo, no entanto, um enorme descompasso entre o ideal projetado pelo direito positivado e a realidade nua, crua e pobre da América Latina. A consolidação da democracia nessa região certamente não se dará por um único ato, mas por meio de um processo que passa pela afirmação da liberdade de imprensa, pela defesa intransigente dos direitos humanos e pelo aprimoramento do sistema de justiça. No que tange a estes dois últimos itens é necessário pontuar que este processo passa necessariamente pela reflexão acerca das instituições do sistema de justiça, sua estrutura e perfil.

Partindo desse pressuposto, o presente artigo pretende situar a Defensoria Pública, como instrumento de concretização do acesso à justiça, nos processos de reforma do Judiciário em curso, avançando sobre o perfil e modelo de instituição mais adequado a este panorama de construção democrática que se reclama na América Latina, e em especial no Brasil

II – A reforma do Judiciário na América Latina e no Brasil

Nos últimos anos, diversos países da América Latina passaram por processos de reforma de suas instituições de justiça. Referida tendência encontra sua fonte em diversos fatores, valendo frisar que os reclamos por uma Justiça célere, eficiente e, sobretudo, previsível é um imperativo da agenda econômica mundial. A propósito anota o magistrado Hugo Cavalcanti Melo Filho: “o processo de reforma da estrutura do Poder Judiciário nos países da América Latina, entre eles o Brasil, decorre de imposição dos organismos financeiros internacionais a estas soberanias endividadas. Prova eloqüente disso é o tantas vezes mencionado Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial, que prescreve uma espécie de receita para a modificação, calcada em três premissas básicas: controle externo do Poder Judiciário, adoção de mecanismos alternativos para resolução de conflitos e verticalização pela prevalência da jurisprudência dos órgãos de cúpula. O objetivo é evidente: reduzir a órbita de ação do Poder Judiciário, especialmente da base da magistratura, assegurando-se a previsibilidade jurídica tão cara ao capital especulativo internacional”. Não se pode olvidar, nesse sentido, que a necessidade de instituição de um órgão planificador que pudesse orientar, de forma homogênea e racional, a formulação das diretrizes de planejamento e despesas dos tribunais de tais países impulsionou sobremaneira tais reformas.

Cabe registrar que, em alguns casos, o processo de reforma buscou fazer frente à invencível demanda que assoberba os tribunais latinos, visando a desjudicialização e a resolução alternativa de conflitos. No entanto, em muitos dos países, as proposições reformistas focaram-se na criação de um órgão de controle e na racionalização dos procedimentos, pecando por construir soluções por dentro de um sistema quase colapsado.

No contexto brasileiro, excelente estudo sobre a reforma do Judiciário, de autoria de Andrei Koerner, identifica as três principais correntes que se contrapõem em referido processo:

Corporativista-conservadora – encabeçada pelos membros das carreiras judiciárias, tem caráter nitidamente refratário aos processos de reforma, pregando que a falta de verbas e estrutura adequada constituem o principal problema do Poder Judiciário, e rechaçando, de um modo geral, a instituição de mecanismos de controle externo.

Judiciário Democrático – encabeçada por entidades específicas de magistrados, pesquisadores e alguns agentes de organizações não governamentais dotados de visão crítica do sistema de justiça e do modelo de juiz vigente, que trabalha com o isolamento do julgador, que conta com formação insuficiente. Pregam a democratização interna dos tribunais e a instituição de mecanismos de controle externo do Judiciário, apontam um déficit de acesso à justiça, e vêem no Judiciário um grande guardião dos direitos humanos.

Judiciário mínimo – encabeçada por entidades econômicas internacionais e grupos de cientistas que sustentam que o Judiciário deve responder de forma célere e eficaz às demandas, auxiliando, deste modo, no processo de estabilização econômica. Vêem a necessidade de se estabelecer um perfil homogêneo para os juízes, de caráter puramente técnico, apolítico.

Interessante notar que tais correntes se evidenciaram claramente no processo de tramitação legislativa da proposição que redundou na Emenda Constitucional nº 45 de 08 de dezembro de 2004, que teve como marco inicial o já longínquo ano de 1992. Mas, o resultado final do processo de reforma constitucional do Judiciário brasileiro não pode ser visto como a consagração singela da imposição de uma agenda econômica internacional. Dada a heterogeineidade das tendências que marcaram sua tramitação, e da contraposição das forças encabeçadas pelos atores engajados nas três correntes acima mencionadas, diversas proposições que se situavam fora daquela pauta foram aprovadas, sendo, parte delas, marcadas por nítida preocupação com a salvaguarda dos direitos humanos, a exemplo da federalização dos crimes contra os direitos humanos, e com a ampliação do acesso à Justiça no país, como a concessão de autonomias administrativa, funcional e iniciativa de proposta orçamentária à Defensoria Pública nos Estados.

E neste particular, entendemos que, de forma inédita na história política recente do país, o tema do acesso à justiça mereceu trato adequado, na medida em que o Governo Federal adotou, como ponto prioritário nas discussões então travadas no Senado da República, a concessão de tais autonomias à instituição incumbida de prestar assistência jurídica integral e gratuita a quem não detém condições financeiras de contratar advogado para defesa de seus interesses.

A idéia da reestruturação do Poder Judiciário com foco na garantia do bom funcionamento do livre mercado não implica, nem mesmo em teoria, no desenvolvimento social e no equacionamento do flagelo da pobreza. Vários têm sido os estudos sobre o impacto da Justiça na área econômica, porém poucos abordam o tema sob a perspectiva da Justiça e a distribuição de renda. Esse é um dos papeis fundamentais da Defensoria Pública, vale dizer, defender o direto a alimentos, à moradia, à saúde, a benefícios sociais, contra as abusividades praticadas no mercado de consumo e de trabalho (neste último caso a atuação da Defensoria Pública ainda é quase inexiste, tendo em vista o reduzido numero de defensores públicos da União). A concretização do princípio constitucional da solidariedade social.

É bem verdade que, já em 1988, o Constituinte adotou, com acerto, o modelo publicista na prestação da assistência jurídica aos necessitados, ao impor aos Estados-membros a criação e estruturação da Defensoria Pública. No entanto, e como apontou estudo diagnóstico realizado pelo Ministério da Justiça que versou sobre a situação da Defensoria Pública no Brasil, a instituição pouco se desenvolveu se comparada às carreiras irmãs da magistratura e do Ministério Público. Assim, no ano de 2003, para cada 100.000 brasileiros havia 7,7 juízes, mas apenas 1,8 defensores públicos e para cada R$ 100,00 gastos com o sistema de justiça, apenas R$ 6,00 eram destinados à instituição incumbida de atender a população carente no Brasil.

Tal fenômeno de hipotrofia da Defensoria Pública, demandava a adoção de medidas concretas voltadas à sua estruturação, o que veio a ser impulsionado pela reforma constitucional do sistema de justiça brasileiro que sinalizou no sentido de que não bastava a construção de um sistema de justiça célere e efetivo, que atendesse somente às grandes corporações e à Administração Pública, litigantes habituais que são responsáveis por grande parte do elevado número de demandas em curso no Poder Judiciário. A alteração constitucional trouxe para a pauta de discussões o tema do acesso à justiça e sinalizou que a formulação de políticas judiciais deveria se voltar para aquele contingente de excluídos.

Mas é necessário avaliar em que medida tal avanço pode representar um efetivo ganho na ampliação do acesso à justiça.

III – A questão do Acesso à Justiça no Brasil

De início, vale lembrar que a expressão acesso à justiça deve ser tomada em sua real extensão: não se confunde apenas com a acessibilidade formal aos serviços judiciários, mas, constituindo direito social da maior relevância, impõe ao ente governamental a adoção de providências concretas que tornem efetiva a concretização dos direitos dos cidadãos. Uma defesa meramente formal, como se sabe, pode mostrar-se mais nociva que a ausência de defesa. Não se pode desconsiderar, portanto, que acepção implica não só na acessibilidade do sistema, mas fundamentalmente no direito a uma solução justa, individual e socialmente, respeitando de modo efetivo as garantias basilares do devido processo legal e da ampla defesa.

Sem embargo, o acesso à Justiça é um dos direitos fundamentais de maior expressão em nosso sistema constitucional, não havendo como se falar em exercício de cidadania sem que o Estado se desincumba de sua tarefa que consiste na provisão de meios para que suas instituições, ligadas ao sistema de justiça, estejam devidamente estruturadas para atender aos reclamos da população.

É bem verdade que, em nosso país, o enorme abismo social e a vexatória concentração de renda acentua sobremaneira o desafio de universalização dos serviços. Segundo dados divulgados pelo IBGE, aproximadamente 77% (setenta e sete por cento) da população brasileira aufere rendimentos inferiores a 3 (três) salários mínimos mensais, sendo que cerca de 38% (trinta e oito por cento) da população aufere até 1 (um) salário mínimo mensal.

Esse enorme contingente populacional já se mostra especialmente vulnerável no que tange à afirmação e efetivação de seus direitos, em razão de sua própria condição econômico-financeira. Como se isso não bastasse, essas vítimas da exclusão social, quando se deparam com uma situação de violação de seus direitos, são as pessoas que mais encontram dificuldades e entraves práticos para reclamar uma prestação jurisdicional reparadora.

Isto porque, desprovidas de informação, muitas vezes sequer se apercebem que tiveram seus direitos violados, pois desconhecem que os possuem. Mesmo quando se apercebem da violação de seus direitos, por vezes não ostentam condições financeiras para locomoverem-se até os locais destinados ao atendimento jurídico gratuito, não aparelhado, via de regra, para o atuar nos grandes bolsões de pobreza. Ainda, assim, quando conseguem reclamar alguma espécie de prestação jurisdicional, em muitos dos casos, a resposta propiciada pelos mecanismos tradicionais do sistema de justiça se mostra ineficaz na resolução efetiva do conflito.

Vale registrar ainda que, não raro, as violações dos direitos da população carente são protagonizadas pelos chamados litigantes habituais ou litigantes organizacionais, como as grandes corporações e o próprio Estado, que, por essa condição gozam de ponderável vantagem para atuar em juízo. Segundo a doutrina mais avalizada as vantagens dos litigantes habituais são numerosas:

“1) A maior experiência com o Direito possibilita-lhes melhor planejamento do litígio; 2) o litigante habitual tem economia de escala, porque tem mais casos; 3) o litigante habitual tem oportunidade de desenvolver relações informais com os membros da instância decisora; 4) ele pode diluir os riscos da demanda por um maior número de casos; e 5) pode testar estratégias com determinados casos, de modo a garantir a expectativa mais favorável em relação a casos futuros”.

Todos esses obstáculos, refletem bem o problema do acesso à justiça, problema este que põe em xeque o próprio Estado Democrático de Direito. Afinal, todo o processo histórico de construção, afirmação e positivação dos direitos da pessoa humana perde o sentido se não for assegurado o acesso à justiça de forma igualitária e universal, de forma a coibir as eventuais violações.

Por outro lado, recentes estudos atestam um alto índice de litigância, como caracterizador do sistema judiciário pátrio. Somente no ano de 2003, verificou-se um número total de 17.494.902 (dezessete milhões, quatrocentos e noventa e quatro mil, novecentos e dois) processos entrados, o que significa dizer que foi instaurado, apenas naquele ano, quase um processo para cada 10 brasileiros. A Justiça Estadual de primeira e segunda instâncias, participou com 11.003.481 (onze milhões, três mil, quatrocentos e oitenta e um processos), somente no ano indicado.

Esse enorme volume processual poderia revelar, à primeira vista, uma suposta democracia na distribuição de justiça no país, o que, no entanto, não procede, visto que os parcos dados disponíveis a respeito do perfil dos litigantes, apontam para a conclusão de que há uso abusivo do sistema judiciário pelas grandes corporações e pela própria administração pública, e um gargalo na concretização do acesso às camadas menos abastadas, do ponto de vista econômico. Um exemplo disso é dado pela acentuada curva ascendente da demanda pelos serviços prestados pela Defensoria Pública, desde sua instalação, o que reproduz apenas a enorme demanda reprimida na distribuição de justiça.

A despeito dos ponderáveis entraves verificados na concretização de tal direito, há que se salientar a existência de políticas públicas voltadas a essa finalidade, que devem ser analisadas, para o que nos valeremos da clássica sistematização levada a cabo por Mauro Cappelleti e Bryant Garth.

Segundo referidos autores, a partir de 1960 notam-se três grandes ondas no movimento universal de acesso à justiça, constituindo a primeira onda a representação postulatória individual em juízo, ou seja, a assistência jurídica gratuita; a segunda onda a representação dos direitos metaindividuais; e a terceira onda o chamado “novo enfoque do acesso à justiça”, ou, em outras palavras, os mecanismos e formas procedimentais diferenciadas, modificações estruturais nos tribunais, uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, e os meios alternativas de solução de conflitos.

Embora tais ondas tenham se apresentado de forma cronológica no Direito Comparado, notadamente nos países da Europa e América do Norte, no Brasil, o movimento de acesso à justiça tem apresentado, a partir de meados do século passado, avanços e retrocessos, sendo possível afirmar que não consolidou sequer o seu primeiro ciclo.

Nesse primeiro ciclo, que se refere à representação postulatória em juízo, em que pese a existência de diversos modelos no mundo, cabe lembrar que o artigo 134 da Constituição da República atribuiu a um ente público, alçado à condição de função essencial à justiça, a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.

No entanto, e como sinalizado anteriormente, um processo de hipotrofia institucional se seguiu à decisão do Constituinte. Basta lembrar que quinze anos após, considerando somente os Estados que haviam instalado a Defensoria Pública, o grau de cobertura do serviço era de apenas 42,3% das comarcas existentes, enquanto 57,7% das comarcas na época existentes não contavam com a estruturação da Defensoria Pública. Para tornar mais tormentoso o problema, o maior percentual de comarcas não atendidas está exatamente nos Estados com os piores indicadores sociais, conforme indica a tabela abaixo reproduzida,:

Tabela 1: Proporção de comarcas atendidas, por Unidade da Federação (em %)

UF AC AL AM AP BA CE DF ES MA MG MS
COMAATEN 63,6 100,0 1,7 100,0 10,5 18,3 100,0 48,1 4,1 45,0 100,0

UF MT PA PB PE PI RJ RO RR RS SE TO
COMAATEN 41,5 34,3 nc 44,7 3,1 100,0 54,5 100,0 70,8 21,6 48,9

COMAATEN: comarcas atendidas

Já no que tange à segunda onda do acesso à Justiça, cumpre registrar que consideráveis avanços foram registrados na tutela dos interesses metaindividuais a partir da Lei de Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor.

No entanto, diversos problemas ainda podem ser apontados, como a excessiva timidez do legislador no tocante à democratização da legitimidade para manejo das ações civis públicas, o que, de certa forma contribuiu para a concentração do ajuizamento da grande maioria de tais demandas pelo Ministério Público, inibindo a emancipação das associações representativas. Críticos apontam, ainda, a utilização temerária e midiática de tal instrumento, bem como a baixa efetividade da intervenção decorrente da enorme dificuldade de execução das decisões ali proferidas.

Embora seja inegável que os instrumentos de representação coletiva constituíram nos últimos vinte anos um efetivo avanço no movimento de ampliação do acesso à Justiça e do fortalecimento da organização social, por meio da legitimação das associações para o ajuizamento das ações, tais instrumentos reclamam aperfeiçoamento. Ademais, não são eles hábeis a prover as respostas relativas a grande parte dos conflitos interpessoais, individuais por sua natureza.

Por outro lado, o chamado “novo enfoque do acesso à Justiça”, espraiou-se no sistema brasileiro a partir dos Juizados de Pequenas Causas, embrião dos atuais Juizados Especiais, e dos programas de resolução alternativa de conflitos.

Os Juizados Especiais, apostando nos princípios da oralidade, simplificação das formas procedimentais, celeridade e concentração dos atos buscavam, quando de sua concepção, facilitar o acesso à justiça ao cidadão comum em causas de pequeno valor econômico, cujo diminuto resultado útil inviabilizaria a movimentação do aparato judiciário comum. Para remoção de tal obstáculo, se criou um micro-sistema judicial completo, de acesso gratuito, cuja essência transcendia a adoção de regime procedimental próprio, incorporando estratégias diferenciadas de tratamento das partes e do conflito.

No âmbito cível, a proposta de se limitar o acesso a tais estruturas apenas para pessoas física, bem como a limitação do valor da causa, visavam substancialmente garantir a vocação dos Juizados como instrumento de distribuição de justiça para as camadas menos favorecidas da população. No entanto, o crônico problema da morosidade do procedimento comum catalisou uma mudança na forma de se conceber a finalidade dos Juizados, o que resultou na sua progressiva ampliação, como a incorporação das micro-empresas como legitimados ativos, sem a necessária adequação da infra-estrutura material e pessoal disponíveis. Outros fatores como a ausência de formação e capacitação dos conciliadores, bem como de designação de juízes para atuação exclusiva nos Juizados, e o perfil formalista que, de regra, assumem os operadores inclusive perante um sistema que se pretende informal, frustrou em grande parte os propósitos dessa reforma no Brasil.

Ademais, pela sua conformação normativa, os Juizados Especiais no Brasil têm competência consideravelmente restrita não abarcando grande parcela das causas cíveis. Tais causas, de natureza eminentemente individual, igualmente passam ao largo da tutela coletiva. Deste modo, e diante da necessidade de chancela judicial para grande parte dos conflitos, a prestação da assistência jurídica gratuita, ou a representação postulatória constitui instrumento de extrema relevância no âmbito cível.

No âmbito criminal, há que se registrar que a tendência inspiradora da edição da Lei 9.099/95, filiada à corrente integradora ou consensual dentro dos modelos de reação estatal ao delito, não prescindiu da defesa técnica, revelando a necessidade de garantia de um defensor público para os réus que não têm condições de constituir advogado. Ademais, ao se inclinar pela inclusão da vítima na solução do processo, criou uma nova demanda de assistência jurídica para esta no mesmo procedimento, o que antes era suprido pela legitimação genérica do órgão acusatório como defensor da sociedade.

Assim, sem embargo dos efeitos positivos de sua instalação para a democratização do acesso, temos que os Juizados são um instrumento insuficiente, por sua própria natureza, para garantir a universalidade da distribuição da justiça no âmbito cível e para garantir a acessibilidade no âmbito criminal.

Cumpre mencionar ademais, que os chamados meios alternativos de resolução de conflitos que buscam incluir as partes de busca da solução negociada e participativa da lide, ainda não são objeto de uma política pública coordenada e consistente em nosso país, de molde a viabilizar um efetivo ganho na distribuição da justiça para a população carente. Neste sentido, pesquisas recentemente realizadas demonstram que tal utilização é ainda incipiente no país, e se ressentem da falta de institucionalização, em termos de garantia de continuidade, e garantia de recursos financeiros e humanos

De todo modo, a tendência de adoção dos meios alternativos de resolução dos conflitos deve ser tido como um complemento ao sistema formal de justiça e não de substituição, sob pena de precarização do serviço e consagração da máxima de que “as portas dos tribunais estão fechadas para os pobres”, restando a eles uma justiça comunitária, que pode ter efeitos altamente positivos desde que devidamente aparelhados e monitorados, o que não se verifica no caso brasileiro diante do pouco acúmulo e da baixa institucionalização de tais experiências.

Assim conclui-se que, seja pela limitação dos efeitos da tutela coletiva, seja pela restrição da competência dos Juizados Especiais, ou seja ainda pela incipiente aplicação dos meios alternativos de resolução de conflitos no país, a Defensoria é instrumento primordial na busca da ampliação e aprimoramento do acesso à Justiça. Bem por isso, acertada a tendência de valorização da instituição indicada pela reforma constitucional do Judiciário, que lhe concedeu autonomias como forma de viabilizar sua efetiva estruturação. No entanto, para viabilizarmos uma conclusão cumpre, ainda, indagar qual é o perfil de Defensoria Pública que se pretende construir a fim de se efetivar a ampliação do acesso à justiça como meio de consolidação da democracia no Brasil.

IV – A crise de credibilidade do sistema de justiça e o perfil da Defensoria Pública a ser construída

É inegável que o sistema de Justiça vivencia uma verdadeira crise de credibilidade no Brasil. A confirmar tal assertiva, dados divulgados pela OAB em novembro de 2003, apontam que 47% dos brasileiros acreditam na Justiça brasileira, enquanto 41% desacreditam. Sem dúvida, fatores como a morosidade e denúncias de corrupção e nepotismo contribuem para esse quadro. No entanto, arriscamos afirmar que a sensação de seletividade do sistema, que advém do déficit de acesso, à Justiça é uma das principais causas de tal fenômeno.

Deste modo, a efetiva estruturação de mais uma instituição de Justiça não pode passar ao largo da reflexão sobre o seu perfil e o atendimento das expectativas sociais, bem como deve atentar para as profundas mudanças operadas no movimento universal de acesso à Justiça, especialmente nas últimas décadas. A sociedade clama pela adequada implementação de uma interface entre o Estado e a afirmação dos direitos humanos da camada da população mais vulnerável. A sociedade clama, por conseguinte, pela estruturação de uma Defensoria apta a desincumbir-se de seu papel com excelência. Bem por isso, se afigura acertada a concessão das autonomias antes referidas, como instrumento de estruturação da instituição, a fim de que as demandas sociais sejam acolhidas e encaminhadas por corpo de advogados públicos, imune a toda sorte de contingências e pressões políticas.

No entanto, a sociedade não mais se mostra receptiva à construção de instituições jurídicas encasteladas, herméticas e distantes da realidade social, pelo que a elevação do debate para um plano que transcende os interesses corporativos, há de passar necessariamente pela implementação de mecanismos de controle e participação social na instituição.

Bem por isso, a construção dessa nova Defensoria deve se abeberar do conteúdo das “ondas” do movimento universal de acesso à justiça e, mais que isso, da tendência de democratização das instituições públicas, adaptando-se a necessidade de defesa dos interesses difusos e coletivos das pessoas carentes, somando forças com os atores já envolvidos nessa tarefa. Ademais, há que se considerar a necessidade de uma atuação preventiva do órgão, atuação essa que prime pela transferência de conhecimento em direitos e pela solução extrajudicial dos conflitos, a fim de buscar “desviar” do Poder Judiciário, já tão assoberbado pelo volume de processos em curso, lides que comportem uma solução participativa e negociada entre as partes. Para tal se faz imprescindível o direcionamento dos investimentos para a estruturação de atendimento interdisciplinar, que se valha de técnicas de mediação e arbitragem.

Sem embargo, a concepção das estruturas físicas destinadas ao atendimento do cidadão necessitado não pode desconsiderar o fato de que o processo de exclusão se traduz, por via de regra, no afastamento da população necessitada do núcleo dos grandes centros. Assim, os recursos materiais e humanos devem ser direcionados, prioritariamente, para as regiões de periferia e para os grandes bolsões de pobreza, não devendo ser mirado o exemplo incipiente de descentralização que atingiu o Poder Judiciário.

Igualmente, há que se considerar a importância do assessoramento de entidades civis e organizações não governamentais que lutem pela afirmação dos direitos humanos, e que não disponham de meios para contratar um serviço advocatício privado, já que tais atores ocupam um espaço de alto relevo na distribuição da justiça, e podem otimizar os resultados da atuação tradicional.

Há que se atentar, ainda, para o perfil do defensor, estabelecendo-se critérios diferenciados no concurso de ingresso e treinamento dos defensores que garantam o recrutamento de operadores humanistas, sensíveis aos problemas sociais, preparados para sua solução e vocacionados para o mister.

Além da qualificação jurídica de excelência, os defensores públicos devem estar preparados para assumir seu efetivo papel de agentes de transformação social, promovendo a defesa judicial dos interesses individuais e coletivos, mas também atuando junto às comunidades, colaborando com a difusão do conhecimento sobre direitos humanos e cidadania, prestando orientação jurídica para a organização comunitária, promovendo mecanismos alternativos de solução e administração de conflitos.

Por fim, tais instituições devem primar pela democracia interna, seja por meio da escolha do chefe institucional por meio de listas tríplices, pelo fortalecimento dos órgãos colegiados, com funções consultivas e deliberativas, com a preponderante participação de representantes eleitos pela classe, e também pela participação social, tanto nos mecanismos de controle e fiscalização como na participação da sociedade civil na formulação de suas diretrizes de atuação e gestão.

Também em matéria de gestão, os avanços nas técnicas de administração e planejamento estratégico devem ser aproveitados pela Defensoria Pública, de modo a otimizar ao máximo o serviço de seus profissionais e os recursos financeiros da Instituição. A modernização do modelo de gestão administrativa e operacional permitirá um significativo incremento na qualidade e eficiência dos serviços prestados à população, como, por exemplo, reduzindo as enormes filas, assegurando que seus assistidos compareçam sempre e somente quando necessário, de modo que não sejam prejudicados com a perda de dia de trabalho (destacando que grande parte é composta por profissionais autônomos), facilitando a comunicação com o público, etc..

A organização do quadro de apoio da Defensoria Pública, é indispensável para a profissionalização do serviço, evitando que significativa parte dos esforços dos defensores públicos sejam dedicados a tarefas que deveriam ser delegadas e, dessa forma, lhe subtraem precioso tempo que poderia ser destinado a sua função precípua: o atendimento direto ao assistido e a identificação dos instrumentos mais adequados para a solução de seu problema. O quadro de apoio, como já ressaltado, deve contar com profissionais de outras áreas do conhecimento, como psicólogos e assistentes sociais, dado o intrínseco caráter interdisciplinar de muitos atendimentos, como na área de família e de infância e juventude.

Não se olvide a necessidade premente da informatização da Defensoria Pública, fator de reconhecida importância na agilização e organização do serviço, bem como de redução de custos a médio e longo prazos. As reformulações na Justiça já apontam para uma crescente informatização dos processos judiciais e, dado o abismo hoje existente entre a estrutura do Poder Judiciário e da Defensoria Pública, esse salto tecnológico poderá ter o deletério efeito de exclusão em relação aos assistidos da Defensoria Pública, caso a instituição que promove sua defesa não esteja equipada para acompanhar esse avanço.

Parcerias estratégicas da Defensoria Pública com a sociedade civil e com os demais órgãos governamentais são, também, importantes estratégias, dentro de um plano de atuação conjunta de diversos atores que, isoladamente não são capazes de promover ações de maior vulto. Assim, por exemplo, grandes projetos de regularização fundiária ou assistência ao sistema prisional podem ser executados por meio de profícuas parcerias.

Essas são algumas das idéias básicas que podem nortear o início do debate. Esperamos que a Defensoria Pública, por intermédio de seus dirigentes e entidades representativas, seja capaz de dar mostras de desprendimento ao articular-se com a sociedade civil, a fim de ofertar uma proposta de construção de um modelo de instituição jurídica diferenciada, que atenda às reais necessidades da população a que é negado o acesso à justiça.

V – Conclusão

A concretização do acesso à Justiça deve ser encarado como um passo necessário para a efetiva consolidação da democracia no Brasil, vez que se trata de direito fundamental de inegável expressão em nosso sistema constitucional, não havendo como se falar em exercício de cidadania sem que se instrumentalize a salvaguarda de todos os outros direitos previstos em nosso sistema, baseado na igualdade. Afinal, como já indagavam Cappelletti e Garth, se nenhum de nossos sistemas jurídicos modernos é imune à crítica, “como, a que preço e em benefício de quem estes sistemas de fato funcionam”?

A reestruturação do sistema de Justiça brasileiro deve atender à meta constitucional de desenvolvimento econômico e social, contribuindo para a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Neste diapasão, a efetiva estruturação da Defensoria Pública é um desafio candente, que tem implicações das mais diversas que tangenciam desde as políticas de segurança pública, até a própria questão da legitimidade do Estado Democrático de Direito. O enfrentamento de tal desafio parece já ter sido deflagrado, em especial, pelo processo de reforma do Judiciário. No entanto, é imprescindível que se atente para a necessidade de construção de um novo paradigma de instituição, verdadeiramente próxima e afinada com os anseios sociais, arejada e aberta não só ao controle mas à participação da sociedade civil, destinatária de suas funções e razão de sua existência.

Bibliografia:

CAPPELLETI, Mauro, Mauro; GARTH, Bryant. “Acesso à justiça”. Tradução e revisão: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988

A Democracia na América Latina rumo a uma democracia de cidadãos e cidadãs / preparado pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ; tradução Mônica Hirts ; Santana do Parnaíba, SP : LM&X, 2004.

Documento Técnico n. 319, Banco Mundial, Washington, D. C. Jun. 1996. Trad. de Sandro Eduardo Sardá.

Estudo Diagnóstico – A Defensoria Pública no Brasil, Ministério da Justiça e PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2004.

MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. “A reforma do poder Judiciário brasileiro: motivações, quadro atual e perspectivas”, R. CEJ, Brasília, n. 21, p. 79-86, abr./jun. 2003http://www.cjf.gov.br/revista/numero21/artigo13.pdf, acesso em 06/05/2006.

KOERNER, Andrei. “O debate sobre a reforma do judiciário”, Novos Estudos, Cebrap, 54, São Paulo, 1999.

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