Em maio de 2006, há cinco anos, policiais e grupos paramilitares assassinaram mais de 500 pessoas no estado de São Paulo em represália aos ataques organizados pela organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). De dentro dos presídios, a organização havia comandado a morte de mais de 50 policiais, agentes penitenciários e até um bombeiro no começo daquele mês. O estopim da ação do PCC teria sido a decisão do governo de transferir lideranças do crime para presídios de segurança máxima. No dia 11 de maio, começaram as transferências. No dia seguinte, tiveram início os ataques da organização e o sangrento revide policial, que assassinou centenas de jovens sem nenhuma ligação com o crime.
Estatísticas mostram que somente entre os dias 12 e 20 de maio de 2006 foram mortos mais de 500 pessoas. Débora Maria da Silva é a mãe de um deles. Edson Rogério dos Santos tinha 29 anos e foi morto dia 15, em Santos. A notícia veio pelo rádio. Era dia das mães e aniversário de Débora. Durante 40 dias ela ficou chocada, quase perdeu as forças, até que disse ter sentido seu filho dizer: “Mãe, se levanta! Seja forte!”. Começou aí a peregrinação.
Contra a impunidade, Débora uniu-se a outras famílias também em luto, vítimas do mesmo terror, e juntos organizaram um movimento cuja missão é “lutar pela verdade, memória e por justiça, de ontem e de hoje”. Surgiu assim o movimento “Mães de Maio”. Atualmente, uma de suas principais bandeiras é o desarquivamento dos casos e a federalização dos crimes, reivindicação feita com o total apoio da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, sob a responsabilidade do defensor público Antônio Maffezoli, que também move ação indenizatória das famílias e vítimas da má atuação do Estado. A federalização, explica Débora, tem o poder de tirar das mãos do executivo estadual a responsabilidade de juntar provas criminais contra ele mesmo, o que dificilmente acontece; por isso, a importância da participação da Polícia Federal nos julgamentos. No último 19 de maio, dia Nacional da Defensoria Pública e da entrega do IV Prêmio “Justiça para Todos”, Débora concedeu-nos a seguinte entrevista:
APADEP: Em que momento começou o Movimento Mães de Maio? Quantas mães estão juntas hoje nessa luta, Débora?
Débora: Depois da morte do meu filho. Eu fiquei muito deprimida, não comia. Comecei a sentir fraqueza e cair da cama de hospital. Tive alucinações por causa dos remédios. E no leito do hospital, vi meu filho, ao meu lado. A imagem dele ficou na minha cabeça, pedindo para eu me levantar e ir para luta. E eu fui. Hoje somos um grupo com 20 famílias, que tiveram filhos assassinados em 2006, 2007, 2010 e 2011.
APADEP: Quando e como a senhora chegou até a Defensoria Pública?
Débora: Não tínhamos uma direção no começo. Fomos a alguns advogados e o preço era um absurdo. Não conhecíamos a Defensoria, achávamos que advogado do estado era pela OAB e que não ia a lugar nenhum, por serem do Estado. Fomos indicados a visitar um ex-promotor de Santos, mas ele cobrou muito caro. Para começar seriam R$ 20 mil. Disse para juntarmos mais famílias, para sair mais barato. Demorou uns seis meses até que o patrão de uma das mães, o jurista Dr.Sérgio Sérvulo, nos indicou os serviços da Defensoria. Lá conhecemos o doutor Felipe Pereira, que nos pediu uma cópia dos inquéritos e o próprio Ministério Público demorou uns nove meses para dar as cópias para a Defensoria. A coordenadora, Dr. Lisa, disse que a gente podia entrar com um pedido de reparo do Estado para as famílias, mas a gente queria condenação pelos crimes. Depois o Dr. Felipe foi designado para ir para o interior de São Paulo, mas a vista do inquérito ficou parada, por causa da demanda da Defensoria, que é muito grande. E depois ele passou para o Dr. Antônio Maffezoli, que fez o pedido de reparo, e até isso o Estado negou, alegando que não tem como se culpar porque poderia ser revanche de namorado ou facção. O estado continua criminalizando nossos filhos depois de cinco anos sem querer ser responsável pelas atrocidades que aconteceram na época.
APADEP: Uma das bandeiras do Movimento Mães de Maio é a federalização dos crimes. Por que lutar pela federalização? Na prática, o que isso significa e o que muda no andamento do processo?
Débora: Eu sabia que a federalização era o único modo porque, pelas instâncias estaduais, jamais a gente teria êxito. Começamos a falar para o Dr. Antônio que a Polícia Federal entrasse na questão, que não tinha outro recurso. E graças ao empenho dele, lutamos e montamos o pedido, junto com outros órgãos, e solicitamos a transferência de competência, para trazer à tona o que foram os crimes de maio. Jamais os órgãos estaduais, a polícia estadual vai produzir prova contra eles próprios. A Polícia Federal já deveria ter entrado na questão desde quando o presidente da República, o Lula, na época que começou a matança, ofereceu a guarda de segurança nacional. E o estado não quis, porque era ano eleitoreiro e o Governo iria mostrar que tinha fraqueza, aceitando a Guarda de Segurança Nacional. Na visão do governo, isso fortalecia o presidente Lula, que era também candidato. Mas o Lula também não cobrou e teve sua parcela de culpa, pois deveria ter cobrado o porquê de tantas mortes, de tantos jovens. Pela última pesquisa, foram mais de 600, com todos os inquéritos arquivados. Por que arquivados? A gente não aceita isso. E é importante sim que traga para a população a verdade, que o Governo se calou durante esses cinco anos.
APADEP: E como está atualmente caminhando esse pedido de transferência de competência?
Débora: Fez um ano, dia 13 de maio, que foi assinado e transferido o pedido para Brasília. Nós estivemos lá, com o Ouvidor-Federal, Doutor Firmino Fecchio. O pedido hoje está parado porque foi designada uma Comissão para vir aqui, fazer e apresentar um dossiê para o Procurador da República avaliar e fazer o pedido. Mas já foi feita reunião com a ministra Dr. Maria do Rosário, que disse que vai assinar o pedido de federalização. Uma comissão especial foi designada para fazer uma varredura, colher depoimentos das famílias e de outros organismos que trataram do assunto. Já visitaram a Comissão de Justiça e Paz, o Secretário de Segurança Pública, o Procurador Geral do Estado e as mães. Fizeram um relatório, entregaram para a ministra, e ela marcou uma reunião em São Paulo, porque as mães exigem que a ministra venha a Santos para poder inibir essa prática de extermínio que está acontecendo na Baixada. Ela deu a garantia de fazer uma reunião com o Governo do estado e disse que vai sim assinar a federalização dos crimes. Só não explicou ainda de que forma. Ela vai trazer o conteúdo quando voltar para fazer uma audiência pública que as mães exigem, aqui na Baixada Santista.
APADEP: Já tem um prazo para isso acontecer?
Débora: Vamos esperar que ela tenha essa audiência com o Governo de São Paulo porque a gente fez alguns encaminhamentos e um deles, exigido pelas mães, é que o Governo do estado mostre onde foram enterrados os corpos dos jovens. No começo da matança, foi deliberado que o Instituto Médico Legal enterrasse em cova coletiva, o Governo autorizou assim, e a gente tem familiares com filhos desaparecidos. Estivemos em contato com Brasília e a gente exige que seja o mais breve possível, para coibir a prática de extermínio que está assolando a Baixada Santista. E eles ainda têm a certeza da impunidade dos crimes de maio, estão todos impunes.
APADEP: As mães têm provas que confirmam a participação da Polícia Militar no assassinato dos jovens?
Débora: Já foi constatado que o grupo de extermínio que matou em 2010, que matou 26 jovens, era o grupo “Ninja da PM”, dito pelo próprio secretário de Segurança e o Comando da Polícia, que nós visitamos. O Comando falou que alguns foram expulsos e outros estão detidos, mas na prática, a gente não tem confirmação disso. Quando estivemos na repartição do comando junto com a Comissão Especial de Brasília, o Dr. Antônio Maffezoli voltou a pedir relatório sobre a intervenção que fizeram com esse grupo de extermínio que matou esses 26 jovens em 2010. E a gente tem certeza que quem matou em 2010, matou também em 2006. Essa prática já vem desde 2006, porque foi da mesma forma, do mesmo modo operante.
APADEP: O que vocês recebem, ainda hoje, como justificativa por ter acontecido o arquivamento?
Débora: No relatório da Universidade de Harvard junto com a Justiça Global, nós descobrimos, por meio de uma Carta Magna, um relatório feito com o apoio da Defensoria e das mães, que os inquéritos foram arquivados porque o Ministério Público, pelo Fórum da Capital, carimbou cerca de três páginas, por volta de uns 60 carimbos, parabenizando o Comando da Polícia Militar pela eficiência. No finalzinho que ele faz a ratificação dizendo que se tiver abuso de algum policial será investigado, mas a gente sabe que, na verdade, eles estão parabenizando os policiais. Vamos tirar cópia e passar isso adiante. Nunca assumiram que por trás das mortes de nossos filhos está o Estado. Eles apresentaram esse relatório dia 2 de maio deste ano e foi uma bomba na visão da gente, porque a gente não entendia porque todos foram arquivados. O inquérito que mais chamou atenção foi da grávida [Ana Paula Gonzaga dos Santos] que foi arquivado em 2006, sendo que era para ser muito bem investigado. Depois todos foram também arquivados, as investigações foram precárias, não investigaram nada, não recolheram provas. Demos as pistas como recolher as investigações e éramos descriminadas, não tinham consideração pelo que a gente falava. Porque o Ministério Público não faz suas próprias investigações. Ele quer que as famílias façam as investigações e quando as famílias fazem eles sempre dizem que não é prova técnica. Então, a investigação que a família faz acaba caindo na boca dos policiais e as famílias acabam sendo ameaçadas, sofrendo repressão, como as mães. Duas delas foram autuadas em flagrante por tráfico de drogas, em flagrantes forjados. Então, a federalização desses crimes é uma resposta tanto para as famílias quanto para a sociedade e a gente tem certeza que vai ter êxito.
APADEP: Qual o motivo da participação do Movimento Mães de Maio na entrega do prêmio “Justiça para Todos”, promovido pela Ouvidoria da Defensoria de SP? O que a premiação do defensor público Antônio Maffezoli representa para as mães?
Débora: O Dr. Maffezoli é um dos defensores do movimento Mães de Maio, uma pessoa digna desse prêmio. Acho que escolheram a pessoa certa para fazer essa premiação, pois ele tem se engajado muito nos crimes de maio e na transferência de competência que as mães pediram. Viu que as mães tinham razão e que era necessário fazer isso para poder dar visibilidade à matança que a retaliação do Estado fez contra essa população empobrecida, no caso nós, da periferia. Viemos aqui para saudar o Dr. Maffezoli e dizer a todos que as Mães de Maio estarão junto com ele e com a Defensoria nessa luta.
APADEP: Recentemente, dia 12 de maio, foi lançado o livro “Do Luto à Luta”, com a história das famílias e do movimento. Há também um documentário sendo feito, correto?
Débora: O livro é resultado de um projeto que ganhamos do Fundo de Participação dos Direitos Humanos, que agregava o vídeo e o livro, inclusive o vídeo mostra o nosso primeiro momento na Defensoria. O documentário já tem algumas partes editadas, algumas animações, já está bem encaminhado, mas por enquanto não tem verba para terminar.
APADEP: Como a senhora avalia a atuação da Defensoria Pública hoje no estado de SP?
Débora: Eu acho que a Defensoria só não caminha mais como deveria porque o governo do estado não respeita, senão dava uma ampla atuação para eles. Os quadros são muito poucos e a demanda é muito grande. E eles ficam emperrados, apesar de terem muita vontade de ajudar. Têm uns defensores muito engajados, mas não conseguem contemplar as pessoas que procuram eles, porque o estado não engorda o quadro, porque o pobre não tem direito à justiça. Ter, até tem, mas com muita dificuldade. Senão fossem essas pessoas maravilhosas a gente não teria conseguido essa transferência de competência. Nossos defensores estão de parabéns.