Diante da recente e amplamente divulgada notícia de que não foi possível à Defensoria Pública de São Paulo chegar a um acordo com OAB/SP para a renovação do Convênio de Assistência Judiciária, torna-se necessário fazer algumas considerações.
O Estado brasileiro, por seu constituinte originário, elegeu o modelo público de prestação de assistência jurídica integral e gratuita, a que está obrigado a prestar, conforme dispõe o art. 5º, inciso LXXIV c/c art. 134 da Constituição Federal.
A instituição pública prevista pela Constituição Federal para o exercício da defesa dos direitos e garantias assegurados aos cidadãos que comprovarem insuficiência de recursos é a Defensoria Pública que, para tanto, tem autonomia administrativa, funcional e iniciativa de lei orçamentária (Emenda Constitucional 45/04).
A Defensoria Pública no Brasil vem se fortalecendo à medida do seu crescimento orçamentário, que ocorre de forma diferenciada em cada Estado brasileiro. Como conseqüência, hoje há um maior atendimento nas comarcas espalhadas por todo o Brasil e a atuação, cada vez maior em núcleos especializados. Tal fato se dá pela realização de concursos públicos para preenchimento dos cargos vagos existentes de defensor público (cerca de 69% dos cargos estão providos) e de servidores, também conforme determina a Constituição Federal.
Fazer concurso público, portanto, não é opção ou faculdade que se dá ao administrador, mas condição de validade para ocupação de qualquer cargo público e não é diferente com o de defensor público. Qualquer solução que se distancie desse mandamento fere os princípios da moralidade, da legalidade e, especialmente, os princípios da acessibilidade e da igualdade, para que qualquer cidadão possa concorrer livremente para a investidura no pretendido cargo.
Em São Paulo, no entanto, vive-se uma experiência anômala. Existem 400 cargos de defensores públicos que estão todos providos. Mas a realidade nos confronta com cerca de 40 milhões de habitantes. Há um enorme déficit no número de defensores públicos, mas curiosamente há orçamento para poder suprir essa defasagem. Assim, enquanto em outros Estados existem vagas na Defensoria Pública, mas não existe uma folga orçamentária para a realização de mais concursos, em São Paulo não existe vaga, mais existe orçamento para contratar mais.
Infelizmente o Estado de São Paulo esperou 18 anos desde a Constituição Federal de 1988 para implantar a Defensoria Pública. Valeu-se, nesse ínterim, de uma antiquada improvisação de nomear advogados dativos para fazerem às vezes de defensores públicos. Os dados comprovam que, em 1997, foram gastos com esse sistema de nomeação cerca de 33 milhões de reais e, dez anos depois, em 2007, 272 milhões. Nesse ano a despesa de pessoal e de manutenção da Defensoria Pública não ultrapassou 58 milhões.
Por outras palavras, é fácil constatar que com essa receita poder-se-ia aumentar em até quatro vezes o número de defensores públicos em São Paulo, que passaria a contar com 1.600 profissionais concursados e exclusivos para garantir aos paulistas uma real e efetiva assistência jurídica integral em todas as comarcas do Estado (360), e ainda economizar 40 milhões de reais.
Visto assim, sob o ponto de vista democrático e constitucional, de permitir a jovens advogados que optem por uma carreira pública e se submetam em igualdade a um concurso de provas e títulos, sob supervisão, inclusive, da OAB, é muito mais vantajoso e de interesse público que se pontue essa questão sem a mácula do desespero, da precipitação ou do preconceito.
Não se justifica, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista orçamentário, a manutenção da antiquada improvisação da realização de convênios para a prestação de serviço público que a Defensoria Pública está constitucionalmente obrigada a prestar. Por óbvio, que as soluções até aqui encontradas, para que não houvesse maiores prejuízos para a população precisam, de vez, serem superadas.
Deve-se optar pelo fim da transição desse modelo, enfrentando o desafio de estruturar a Defensoria Pública de forma definitiva e correta, sem prejuízo aos assistidos e a legítima pretensão de milhares de jovens brasileiros que postulam uma vaga em um concurso público, para pertencer a uma carreira jurídica de Estado.
Para tanto, necessitamos afastar os dogmas que permeiam essa discussão. Há muito interesse político em jogo e não necessariamente amparado pelo interesse público ou pelas normas constitucionais. Deixar as coisas como estavam é condenar o Estado de São Paulo a viver em um modelo desde 1988 ultrapassado (assistência jurídica X assistência judiciária). Modelo que serviu a uma necessária transição, mas o perigo de eternizá-la fará de todos os paulistas dependentes dessa antiquada improvisação.
Mudar é preciso. Ter coragem para assumir e reagir se revela um ato de dignidade. Devemos, portanto, prestar absoluta solidariedade aos colegas paulista, que injustamente estão sendo pressionados para que se perpetue um convênio nas condições unilateralmente impostas pela OAB/SP. O Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, já sustentou que “a questão da Defensoria Pública, portanto, não pode (e não deve) ser tratada de maneira inconseqüente, porque, de sua adequada organização e efetiva institucionalização, depende a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas – que sofrem inaceitável processo de exclusão que as coloca, injustamente, à margem das grandes conquistas jurídicas e sociais.” (ADI 2903)
Estamos lutando para efetivar o direito da grande maioria da população, que de longe observa essa discussão com incredulidade. Temos muito ainda para avançar. O primeiro passo é assumir que já é tempo de parar de improvisar. A efetiva estruturação da Defensoria Pública de São Paulo, assim como já ocorre em outros Estados, será um diferencial para todo o Brasil e um enorme benefício para a população paulista. São Paulo sempre foi um exemplo de modernidade e desenvolvimento. Não será agora que sucumbirá a modelos ultrapassados.
Os paradigmas modernos de Defensoria Pública exigem cada vez mais profissionais especializados, de dedicação exclusiva e que busquem prioritariamente soluções dos conflitos de forma extrajudicial, resguardando, qualitativamente, para as demandas, a propositura de ações necessárias. Apontando para esse norte, estamos contribuindo de forma objetiva para que o sistema judicial possa melhor responder aos anseios de toda a sociedade.
Fernando Calmon
Presidente da ANADEP – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS