“A gente já não tem nada. O rapa da polícia vem e tira tudo.” “A polícia passa avisando que, se a gente não sair de lá, eles voltam para bater em todo mundo.” “São sempre os policias homens que revistam as meninas. Queremos justiça.” “Muitas vezes só dá pra tomar banho na bica. Isso é passar vergonha. Quando é menina, taxista passa buzinando e assobiando.” “A polícia veta até doação de comida para nós.” “Não adianta a gente falar e nada acontecer. A gente já não dorme, porque podemos ser o próximo a morrer.”
As vozes rasgadas de Ian, Tainá, Wallace e Rosineide protagonizaram a audiência pública que discutiu as condições de vida de crianças, adolescentes e jovens adultos que vivem nas ruas de São Paulo e apontou encaminhamentos para futuras ações e políticas públicas relacionadas ao tema.
O debate, realizado na noite desta terça-feira (21/6), no auditório da Defensoria Pública do Estado de SP, reuniu trabalhadores da rede de serviços que atendem essa população e, principalmente, as crianças e adolescentes que vivem e sobrevivem na rua, em um cotidiano marcado pela sistemática violação de seus direitos.
Agência Brasil
A defensora pública Ana Carolina Schwam, colaboradora do Núcleo Especializado da Infância e Juventude, expôs a necessidade de integração entre os órgãos que compõem o sistema de justiça, para garantir que os direitos fundamentais dessas crianças e adolescentes não sejam mais desrespeitados. “Devemos pensar em novas respostas para essa questão, que não está nos equipamentos já existentes – para tentar mudar essa realidade, é preciso ou adaptá-los ou criar novos espaços para o atendimento”, defendeu Ana Carolina.
Um representante do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos afirmou que, neste início de inverno, cerca de cem pessoas em situação de rua têm utilizado o atendimento da Defensoria Pública dedicado a essa população – nenhuma delas é criança ou adolescente, porém.
Ouvidor-geral do órgão, Alderon Costa pediu um minuto de silêncio em homenagem a todas as crianças e adolescentes que foram vítimas da vulnerabilidade e descaso social e afirmou que “o frio maior nessa cidade é a falta de política pública direcionada a eles”.
Professora da da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Maria de Lourdes Teixeira traçou um histórico da ocupação da rua por crianças e adolescentes no Brasil. “Essa condição existe desde o século 16, quando os jesuítas trouxeram de Lisboa crianças que serviam de isca para os pequenos índios. Mais tarde, no século 19, a Lei do Ventre Livre deu liberdade aos filhos de escravas, mas estes não podiam ficar com as mães. Por fim, na segunda metade do século 20 o processo de urbanização das cidades brasileiras agravou a situação e produziu levas de meninas e meninos cada vez mais novos a ocuparem as ruas da cidade.”
De acordo com dados da primeira pesquisa censitária sobre crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil, divulgada em 2011 pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável (IDEST), existem cerca de 24 mil pessoas nesta condição. Quase 20% delas – ou 4.751 – vivem nas ruas do estado de São Paulo. A pesquisa ainda indica que, entre as crianças e adolescentes que têm a rua como moradia, a maioria é do sexo masculino (72%), tem entre 12 e 15 anos (46%) e declarou-se de pele parda (49%).
Maria de Lourdes aponta a desarticulação dos serviços e fragmentação de esforços como uma das principais causas da baixa efetividade da assistência oferecida a eles – que, em 62% dos casos, optam por dormir na rua ao invés de instituições assistenciais. “Existe um paradoxo ao constatar que, com investimentos sobrepostos, a situação não se altera – pelo contrário, se agrava, ficando cada vez mais crítica”, observa.
Para ela, é preciso superar a disputa por protagonismo entre os atores do sistema, que deveriam deixar de lado suas convicções pessoais e buscar uma concepção mais afinada sobre o que são crianças e adolescentes e quais são seus desejos no mundo atual. “Isso poderia nortear as ações necessárias para garantir sua sobrevivência física e psíquica.”<
Durante a audiência, o fechamento de um espaço de atendimento para crianças e adolescentes em situação de rua no Pátio do Colégio foi alvo de polêmicas. “O fim desses espaços acaba potencializando o risco que esses meninos correm”, afirma Luiza Ferreira, da Rede Pelo Não Silenciamento de Vidas e Mortes. “O fechamento desse espaço é um bom sintoma da situação das políticas públicas que existem para encarar o tema”, aponta Myro Rolim, do Cedeca Interlagos.
Para o supervisor de equipe do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Infantil, Anderson, é necessário pensar em lugares acolhedores para as crianças, assim como a audiência pública. “É a gente que tem que se adaptar a eles, e não o contrário. Acredito em uma política pública para a população de rua que deixe a porta aberta e não restrinja a circulação dessas pessoas”, defende. “Não podemos fragmentar esse cuidado. É isso o que queremos quando nos unimos aqui, intersetorialmente, com representantes da saúde, assistência e cultura.”
“Como fazer o conjunto da população compreender as crianças e adolescentes, indiferentemente de suas origens sociais, como sujeito de direitos da infância e juventude?”, questiona Maria de Lourdes. Ao citar a morte do menino Ítalo, 11, assassinado por policiais militares após roubar um carro no Morumbi, a professora afirmou que o caso “revela com maior contundência nossos fracassos como sociedade, tornando-se um sintoma emblemático e doloroso do nosso tempo e do nosso mundo”.
“Devemos sair de uma posição que só aponta culpados e começar a problematizar a nossa própria atuação. Isso pode ser eficiente para pensarmos com radicalidade a nossa contribuição na área e começar a desenhar um novo futuro possível às crianças que perambulam pelas ruas das cidades”, finaliza.
FONTE: ANADEP