Advogado refuta argumentos da ADI 5.296, que questiona autonomia da DPU

Subordinação de Defensoria Pública significa afrontar a Constituição

Por Pedro Lenza

 

A EC nº 45/2004 (Reforma do Poder Judiciário) estabeleceu a autonomia funcional, administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias apenas em relação às Defensorias Públicas Estaduais.

 

Inegavelmente, dado o caráter nacional e uno da instituição, organizada em cada ente federativo à luz da simetria, bem como a necessidade de se estabelecer um tratamento isonômico entre as Defensorias nos âmbitos federal, estadual e distrital, houve um grave erro cometido pelo constituinte reformador ao tratar, na EC n. 45/2004, apenas da Defensoria Pública Estadual.

 

Na busca de sua correção algumas medidas foram implementadas: a) nova proposta de emenda durante a votação da Reforma do Judiciário, corrigindo a imperfeição; b) ajuizamento da ADI 4.282 (pela Associação Nacional dos Defensores Públicos da União – ANDPU), com o pedido de interpretação conforme à Constituição para se reconhecer a autonomia da Defensoria como um todo e não apenas da estadual; c) em momento seguinte, de modo mais efetivo, a aprovação de emendas constitucionais.

 

Como se sabe e na ordem apresentada, a primeira tentativa de correção do “erro” foi a apresentação, pelo Senado Federal, da PEC 29-A, já aprovada naquela Casa e que ainda tramita na Câmara dos Deputados desde o ano de 2005 (como PEC 358), conhecida como “PEC Paralela da Reforma do Poder Judiciário” e que fixa, de modo natural e correto, a autonomia para as Defensorias Públicas do DF e da União.

 

Diante da brutal demora em se aprovar o texto, bem como da inexistência de julgamento da citada ADI 4.282, novas propostas de emendas à Constituição, tratando o tema de modo isolado, foram aprovadas, destacando-se a EC nº 69/2012, que deu autonomia para a Defensoria Pública do DF e a EC nº 74/2013 que fixou, em igual amplitude, autonomia para a Defensoria Pública da União.

 

Inusitadamente, no dia 10 de abril de 2015, portanto, quase dois anos após a promulgação da EC nº 74/2013 (que se deu em 6/8/2013) e com infundado pedido de liminar, a presidente da República, Dilma Rousseff, ajuizou a ADI n. 5.296, requerendo que fosse declarada a inconstitucionalidade da emenda, com fundamento em dois esdrúxulos argumentos: a) vício formal por suposta violação à regra da iniciativa reservada ao presidente da República (art. 61, parágrafo 1.º, II, “c” – iniciativa para dispor sobre o regime jurídico dos servidores públicos da União); b) por consequência, violação à cláusula pétrea da separação de poderes (art. 60, parágrafo 4.º, III).

 

Inegavelmente, com o máximo respeito, os argumentos são totalmente insustentáveis. Em primeiro lugar, conforme já tivemos a oportunidade de estabelecer em outro estudo ao analisar a EC nº 73/2013, que criou os Tribunais Regionais Federais das 6.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª Regiões, introduzindo o parágrafo 11 ao art. 27 do ADCT, em discussão na ADI 5.017, não se pode fazer qualquer relação entre o princípio da simetria a ser observado no âmbito estadual, distrital e municipal, com a manifestação do poder constituinte derivado reformador a alterar a Constituição Federal.

 

As matérias de iniciativa reservada estabelecidas para o presidente da República, por simetria, devem ser observadas pelos demais Chefes do Poder Executivo, mas não em relação ao processo de reforma da Constituição da República.

 

De fato, conforme consolidou o STF, para esses temas previstos no art. 61, parágrafo 1.º, II, nem mesmo a emenda à Constituição estadual poderia servir como mecanismo para “driblar” a previsão da iniciativa reservada ao governador de Estado (nesse sentido cf. o voto do Min. Marco Aurélio na ADI 3.930).

 

Essa regra veio a ser flexibilizada pelo STF no sentido de não haver a exigência de se observar a regra da iniciativa, reservada quando estivermos diante da manifestação do poder constituinte derivado decorrente inicial, ou seja, aquele que elabora a Constituição do Estado ou a Lei Orgânica do DF pela primeira vez (cf. ADI 2.581, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, j. 16.08.2007, Plenário, DJE de 15.08.2008. No mesmo sentido: ADI 1.167, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 19.11.2014, Plenário, DJE de 10.02.2015).

 

Dessa forma, o STF apenas enfrentou a questão envolvendo a legislação estadual (e, em outros julgados, legislações municipais) e as emendas introduzidas no plano estadual para a alteração da Constituição estadual (nesse sentido, todos os precedentes citados na ADI 5.296, a saber: ADIs 3.930, 2.966, 1.381, 3.295, 4.154, 2.420 e 637).

 

O dever de se observar simetricamente as regras estabelecidas no art. 61, parágrafo 1.º, II, decorre da disposição contida no art. 25, ao prever que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios da Constituição Federal (no mesmo sentido no âmbito do Distrito Federal, conforme art. 32, parágrafo 3.º, bem como para os Municípios, em razão do art. 29, caput).

 

Assim, no momento do ajuizamento da referida ADI 5.296 (10/4/2015), não havia qualquer precedente da Corte que tivesse reconhecido o sugerido vício formal subjetivo de inconstitucionalidade para as hipóteses de emendas à Constituição Federal, que veiculam matérias de iniciativa reservada ao presidente da República.

 

Aliás, a pretensão formulada está inegavelmente destituída de fundamento, mostra-se infundada, viola a regra expressa do art. 60, I, CF/88, além de alterar a verdade dos fatos, no caso, como se disse, a jurisprudência do STF que, ao contrário do afirmado na petição inicial, não tem qualquer relação com a hipótese da EC nº 74/2013, sem contar o retrocesso em termos da efetiva proteção aos necessitados[1].

 

Em relação à manifestação do poder constituinte derivado reformador, novamente exemplificando a EC 45/2004, que criou o CNJ (apesar de não ser tribunal inferior é órgão do Poder Judiciário — art. 92, I-A), bem como extinguiu os tribunais de alçada, não foi nulificada pelo STF. Ainda a EC 24/99n, que pôs fim aos juízes classistas, também não foi declarada inconstitucional pela Corte, e, aliás, em nenhum momento houve qualquer discussão sobre esse aspecto (vício formal) em relação à EC 45/2004, também de iniciativa parlamentar, ao estabelecer a autonomia da Defensoria pública estadual.

 

O poder constituinte originário fixou os legitimados para reforma da Constituição, indicados no art. 60, I, II e III (iniciativa concorrente e não exclusiva do presidente da República), bem como os limites materiais fixados nas cláusulas pétreas, não se podendo criar outros limites que não esses explicitados. Como se disse no art. 61, parágrafo 1.º, II, “c”, não está direcionado às emendas constitucionais no plano federal. Consequentemente, não teria sentido o argumento de violação à cláusula pétrea da separação de poderes.

 

E mais, estabelecer outras restrições significaria impedir a atualização do texto no contexto da evolução social  e, assim, “petrificar” a Constituição, oficializando uma nefasta ditadura de um exclusivo legitimado (no caso, o presidente da República) para os temas ali previstos no art. 61, parágrafo 1.º, II.

 

Além de toda essa argumentação, que já seria suficiente para total improcedência da ADI 5.296, a reforma introduzida pela EC n. 74/2013 não tem nada a ver com “servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria” (art. 61, parágrafo 1.º, II, “c”). A previsão da autonomia da Defensoria Pública da União vem ao encontro da realização do direito fundamental de acesso à ordem jurídica justa e do tratamento nacional e uno da instituição dentro de uma perspectiva de isonomia e de concretização de direitos fundamentais.

 

Diante do incontestável reconhecimento de autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria pública estadual do DF e da União (ECs ns. 45/2004, 69/2012 e 74/2013), não se admite a sua vinculação a quaisquer dos Poderes (as disposições são de eficácia plena e aplicabilidade imediata). Estabelecer que a Defensoria pública é integrante ou subordinada ao Poder Executivo, diante das regras introduzidas, significa afrontar a Constituição e regredir em termos do direito fundamental de proteção aos necessitados.

 

Por falar em necessitados, devemos deixar registrada a importância do papel da Defensoria na “justificação” da PEC 247/2013, aprovada e transformada na EC n. 80/2014 (um verdadeiro marco para a carreira da Defensoria) considerado importante estudo, de recomendável leitura, especialmente pelos governantes, realizado pela Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP em conjunto com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, com o apoio e colaboração do Ministério da Justiça, denominado “Mapa da Defensoria Pública no Brasil”.

 

Conforme destacado no trabalho, no Brasil havia “8.489 cargos criados de Defensor Público dos Estados e do Distrito Federal, dos quais apenas 5.054 estão providos (59%)”. Esses 5.054 Defensores Públicos se desdobram para cobrir 28% das comarcas brasileiras, ou seja, na grande maioria das comarcas, o Estado acusa e julga, mas não defende os mais pobres.

 

Na Defensoria Pública da União a situação não é diversa: São 1.270 cargos criados e apenas 479 efetivamente providos, para atender 58 sessões judiciárias de um total de 264, o que corresponde a uma cobertura de 22%”[2].

 

Devemos então aguardar a posição do STF no julgamento dessa relevante questão, esperando que não se reconheçam os argumentos lançados que, sem dúvida, não só são destituídos de fundamentos (insubsistentes), como estão na contramão dos documentos internacionais, como, por exemplo, a Resolução n. 2.821/2014 da OEA que recomenda aos Estados a concessão aos Defensores Públicos de independência e autonomia funcional, financeira e/ou orçamentária e técnica (item 5), como destacado por Daniel Sarmento em bem fundamentado parecer elaborado no sentido da constitucionalidade da EC n. 74/2013   [3]

 

[1] A prestação de assistência aos necessitados e vulneráveis não deve ser vista como “favor”, mas direito da sociedade e dever do Estado, no sentido de inegável “metagarantia” (cf. BURGER, Adriana Fagundes, KETTERMANN, Patrícia, LIMA, Sérgio Sales Pereira (org.). Defensoria Pública [recurso eletrônico] : o reconhecimento constitucional de uma metagarantia. Dados eletrônicos. Brasília: ANADEP, 2015. 283 p. – http://www.anadep.org.br/wtksite/AF_E-book_Metagarantia.pdf – acesso em 20/abril/2015).

 

[2] O estudo é do ano de 2013 (os dados analisados na pesquisa foram coletados entre os meses de setembro/2012 e fevereiro/2013). Para relatório completo: http://www.anadep.org.br/wtksite/mapa_da_Defensoria_publica_no_brasil_impresso_.pdf (acesso em 20.04.2015). Os números devem ser acompanhados e servem de importante trincheira de batalha na consolidação dessa carreira tão importante para o país (estima-se que, segundo os dados do IBGE/2010, 82% dos brasileiros – com renda de até 3 salários mínimos, ao menos em tese, dependem do trabalho desses combatentes, vocacionados e incansáveis advogados). No fechamento desta edição, estavam em andamentos alguns concursos públicos no âmbito estadual, bem como, para DPU (neste caso, o edital com data de 31.12.2014, para o preenchimento de 58 vagas – contando a DPU com 555 defensores).

 

 

Pedro Lenza é advogado, mestre e doutor pela USP.

 

Artigo originalmente publicado no site Consultor Jurídico.

 

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